quinta-feira, novembro 23, 2006

Revisited

Atravessou a rua sem olhar para os lados, medo de ser reconhecido. Sem medo de carros, porém, só carroças por lá, carros de boi que você pode ouvir de longe o gemido.
Ainda estava tudo lá, mas tudo tinha cabelos brancos de teia de aranha, mato crescendo cobrindo o caminho de barro batido, a porteira escancarada mais parecendo uma boca banguela.

O tempo passou.

Andava com dificuldade pelo chão, sem ver a trilha de chão vermelho que lembrava de criança, tudo muito mato. Ia em direção à casa: consolo! Ainda podia se ver, no alto do morro, de pé. Talvez ela fosse jovem, ainda... Mais que o mundo, que caducava e ria e chorava ao mesmo tempo, sempre por causa... Por causa de quê, mesmo? Muito tempo, já esqueceu.

As árvores ainda estavam lá, testemunhas do tempo, mas sem brinquedos de balançar pendurados, a casinha nem sinal. Chuva ou ladrão? O assassino não importava, só a dor do golpe. Ver a criança morta ao seu redor doía. Ou melhor, não; não doía mais, só desesperava, ferida muito funda e muito antiga, coceira na chuva.

Casa sem portas, sem janelas, sem telhas. Sem cortinas de esconder dragões e bandidos de bangue-bangue. Sem escadas que viravam montanhas com castelos no alto com princesas dentro. Tudo parecia ter se esquecido dos jogos e das risadas gostosas e dos sustos na mãe. Conversar com avó muito muito velhinha que não lembra dos parentes e geme baixinho, pedindo pelos netinhos que a memória não sabe mais ver. Mas estão todos ali, bem na frente.

Mas ela continua gritando.

O grito doía no peito. Vinha um outro, mais seu, parado no estômago, bem alto e meio azedo. Subiu correndo as escadas podres, matando os cupins no meio do caminho. Estava lá, no sótão. Pegar e sair rápido, não lembrar a própria morte daquele jeito. Era muito cruel ver que só ele lembrava, que nem as coisas tinham pena dele e queriam a todo custo arrancar água de sua vista.

Chegou no topo, viu o baú, branco-cinza de poeira. Abriu com pressa, virou tudo por cima do chão, menos por nojo das traças e baratas que saíam voando. Mais com raiva de tudo não ser pra sempre. Vasculhou as bugingangas, roupas velhas roídas, brinquedos de ferrugem vermelha, até achar. O saco estava puído e todas elas caíram no chão. E, de repente.

As estrelas, e havia vida de novo.

Nenhuma delas havia quebrado, sumido, todas lá. cinqüenta e oito bolinhas de gude batendo no chão e rolando, fazendo barulho, e tudo passando de novo nos olhos. Os buracos cavados na terra do quintal, triângulo riscado de giz no cimento. A riscada de laranja ele ganhou de aposta, a tida transparente foi a primeira que comprou, guardando o troco do pão... As treze, aquelas, todas iguais iguaizinhas!

Uma a uma, catava do chão e guardava no bolso. E de supetão brincava na chuva, descia a escada de dois em dois degraus, dava língua pras pessoas grandes. Ria ria ria... Riso depois de tempo.

Ainda dá, pensou. Ainda estava tudo lá, todos. Ligou para casa, e do outro lado seu filho deu um pulo e desligou o telefone, já contando os dias para passar as férias na casa da bisavó.

domingo, julho 23, 2006

Poesia

Palavra
é pedra na garganta

Amor
é faca que a arranca

sexta-feira, maio 19, 2006

Borboletas

Pelos olhos de Bete, a cena toda é um milagre. É um fim de tarde e faz sol, uma surpresa na época de chuvas que já começou, e ela sentada num banco da praça, a brisa fresquinha, não faz calor. Ela quer uma boa notícia, embora espere por uma desilusão; suas mãos abrem e fecham a bolsa a todo momento, mesmo o celular não tendo tocado.

E começa. São dezenas de borboletas amarelas, todas juntas, bem à sua frente. Elas não passam por ela simplesmente, como seria de se esperar, mas escolhem ficar lá, só para ela. Ou pelo menos é o que Bete pensa; é só nisso que consegue pensar enquanto, com lágrimas nos olhos, esquece por um momento a angústia que a persegue há semanas. Mal percebe quando o celular toca em suas mãos, atende sem desgrudar os olhos da revoada de borboletas - é essa a palavra, revoada? Ela não sabe, e o encanto não deixa espaço para que ela pense mais nisso, só permite que ela ouça as palavras, quase gritadas, que chegam pelo telefone:

"Deu certo, ele etá bem!"

O clichê completa-se com o aparelho caindo no chão, Bete ajoelhando-se e agradecendo a Deus o milagre, toda riso e lágrimas. As borboletas vão embora, mas já cumpriram seu papel de portadoras da boa nova. Elas não precisam mais estar ali, não precisam mais existir: já são uma memória que Bete carregará para sempre. Por causa dela, Bete voltará a ir à Igreja, batizará os filhos, brigará com o marido nos domingos de manhã. Acenderá velas e incensos, rezará orações diárias.

E sempre que vir uma borboleta amarela, lembrará com carinho do dia em que uma vida que julgava perdida foi ganha de volta. E agradecerá silenciosamente às pequenas borboletas que trouxeram de volta uma alegria que não esperava rever. QUando for velha, ensinará a seus netos que uma borboleta é um sinal de Deus.

Mas e elas? E as borboletas, o que pensam disso?

Será que elas sabem da alegria de Bete, será que elas ligam para a mulher que transformou o desespero em felicidade, que grita um obrigado para o céu?

Uma revoada de borboletas - assim como Bete, elas não ligam se é essa a palavra - se importa com as flores, fonte de alimento, com os pássaros, aranhas e sapos, seus predadores, e com a possibilidade de acasalamento, seu objetivo de vida. O resto não faz o menor sentido.

Bete se preocupa se estas borboletas que ela vê não são nem um décimo do que os ovos que uma única delas botaria em um dia? Que havia o dobro delas há uma semana atrás? Que daqui a alguns dias não haverá mais nenhuma delas, apenas os ovos que as mais fortes conseguirão pôr, que vão chocar em larvas e repetir talvez para sempre esse ciclo?

Pelo contrário: a Bete não importam a vida e morte das borboletas. Por ingenuidade, às vezes põe-se a imaginar se elas ainda não estariam por aí, levando milagres a mais filhos e filhas de Deus. Chega a reconhecer dez, vinte anos mais tarde uma daquelas mensageiras nas manchinhas amarelas esvoaçantes de cada primavera, ingênua, ignorando suas mortes - trágicas? Não, falta tragédia na vida das borboletas.

E assim as borboletas também nada sabem de Bete, que era apenas uma pedra engraçada que protegia contra o vento. Para as borboletas não há mensagem, não há milagre, há apenas a vida que não se consegue entender.

domingo, abril 23, 2006

Via Láctea

(Renato Russo)

Quando tudo está perdido
Sempre existe um caminho
Quando tudo está perdido
Sempre existe uma luz
Mas não me diga isso
Hoje a tristeza não é passageira
Hoje fiquei com febre a tarde inteira
e quando chegar a noite
cada estrela parecerá uma lágrima
queria ser como os outros
e rir das desgraças da vida
ou fingir estar sempre bem
ver a leveza das coisas com humor
mas não me diga isso
é só hoje e isso passa
só me deixe aqui quieto
isso passa
amanhã é um outro dia não é
eu nem sei porque me sinto assim
tem de repente um anjo triste perto de mim
e essa febre que não passa
e meu sorriso sem graça
não me dê atenção
mas obrigado por pensar em mim
quando tudo está perdido
sempre existe uma luz
quando tudo está perdido
sempre existe um caminho
quando tudo está perdido
eu me sinto tão sozinho
quando tudo está perdido
não quero mais ser quem eu sou
mas não me diga isso
não me dê atenção
e obrigado por pensar em mim
não me diga isso
não me de atenção
e obrigado por pensar em mim.
------------------------------------------------------------------------------------------------
Sem grandes novidades; meio sem graça... Mas de volta. É isso que conta, acho.

sábado, março 18, 2006

Amor Farpado

Dói saber
meu sangue fraco
minhas lágrimas fáceis
meus ossos de vidro
minhas palavras que morrem sempre em algum lugar entre a garganta e o estômago

Me fazem sangrar
seus olhares de faca
seus gritos de pedra
seus silêncios de gelo
o aperto de seus braços que dia sim dia não me amam ou me odeiam

Quero mas não posso deixar
meu espinho que não sai
meu vício incurável
meu câncer cotidiano
seu amor minha droga que me mata uma gota de sangue e um eu te amo por dia

terça-feira, fevereiro 21, 2006

O Girassol

Do fedor explodiu o amarelo
sem contar de onde veio sua semente.
Não deu satisfação, apenas apareceu
por cima da água suja do esgoto
do matagal verde do esgoto
vencendo a lama e o mau cheiro

Chegou de supetão
e de um dia para o outro plantou-se
fazendo frente à fumaça dos carros
aos ônibus que passam de um lado e outro
aos prédios feios e de alma triste
às pessoas que passam sempre cegas e irritadas

Mas nada disso o derrota:
ele nasceu para erguer seu rosto orgulhoso
fitando o sol, num gesto zombeteiro
fazendo pouco da sujeira e do fedor
dos shoppings e igrejas e delegacias
dos carros e pessoas sem alma

Semana que vem talvez ele já tenha ido embora
como veio, sem ter explicações a dar
deixando só a saudade da vida
que por alguns momentos apagou a cidade morta.

sábado, fevereiro 11, 2006

Ele chegou devagar, sem anúncio, sem estardalhaço. Começou pelos detalhes; como era de se esperar, ninguém o notou enquanto ocupava apenas aquele cantinho atrás da porta; ninguém nunca reparava lá mesmo. Ninguém viu quando ele chegou também na parte de cima dos armários, debaixo do fogão e da geladeira.

Então, decidiu arriscar: derramou-se sobre as folhas e flores da varanda. As pessoas olharam para ele e finalmente notaram sua presença, e ele quase desfez-se de temor por seu futuro, ameçado por promessas de panos úmidos e vassouras. Mas eram apenas isso, promessas, e tão logo ele percebeu isso, espalhou-se sem pudor pela prataria, pela louça menos usada, pelas fotografias e recordações nos armários, nos livros raramente retirados de suas prateleiras.

Sua marcha agora não se detia por nada. Em vão, as pessoas finalmente saíram de sua inércia e entregaram-se a frenesis de limpeza, desinfetantes e espanadores. De nada adiantou: ele agarrava-se firmemente a cada milímetro de território conquistado, e o que era limpo pela manhã pela tarde já havia novamente sido ocupado novamente pelo adversário. Com uma paciência toda sua, avançava lentamente pela casa, invadindo a mesa ainda posta para o café, a cama até agorinha ocupada, o sofá em que se costumava deitar depois do almoço.

E então, um belo dia, acabou. Num momento de descuido, ninguém lembrou de colocar o pano debaixo da porta do último quarto intocado. Em instantes, ele insinuou-se para dentro com o vento, cobrindo tudo com seu cinzento melancólico, encardindo, sujando. As pessoas, desesperadas, não conseguiam acreditar em suas próprias peles cobertas de cinza, e tentavam remover a camada de pó que as sufocava cada vez mais. A água já não dava certo (o próprio chuveiro já estava entupido e dele só saia uma lama escura), e elas tentaram espanar-se, dar tapas na pele, arranhar-se, cortar-se com as unhas até verem o sangue misturar-se à poeira. Tarde demais. No fim, nada deu certo, e na casa restou só a tranquilidade cinzenta do esquecimento.

segunda-feira, janeiro 16, 2006

Primeiro Andar

(Rodrigo Amarante)

(Para ouvir a música, segure Shift e clique aqui)

já vou, será
eu quero ver
o mundo eu sei
não é esse lá

por onde andar
eu começo por onde a estrada vai
e não culpo a cidade, o pai

vou lá, andar
e o que eu vou ver
eu sei lá

não faz disso esse drama, essa dor
é que a sorte é preciso tirar pra ter
perigo é eu me esconder em você
e quando eu vou voltar, quem vai saber

se alguém numa curva me convidar
eu vou lá
que andar é reconhecer
olhar

eu preciso andar
um caminho só
vou buscar alguém
que eu nem sei quem sou

eu escrevo e te conto o que eu vi
e me mostro de lá pra você
guarde um sonho bom pra mim

eu preciso andar
um caminho só
vou buscar alguém
que eu nem sei quem sou

quarta-feira, janeiro 11, 2006

Romance em três atos (III)

III. Arlequim
Todos os dias acordo com a ânsia incontralável de falar com ele. De pedir desculpas pelo que fiz, de abraçá-lo chorando, de poder tirar esse peo do coração. De ficar do lado dele, onde é meu lugar de verdade. Então, eu tomo banho, arrumo-me o melhor que posso, e ando pela rua imaginando a cena do reencontro, ele me recebendo novamente de braços abertos.
E tudo escorre pelo ralo quando o vejo.
Às vezes ele está saindo de casa. Alguns dias, quando consigo chegar mais cedo, ainda posso vê-lo pela janela, do lado de dentro de casa, sozinho. Mas o pior é quando ele está com o outro. Aquele que, por culpa só minha, tomou meu lugar. Ou melhor, aquele para quem eu dei meu lugar, que soube ocupá-lo quando o abandonei.
EU O ODEIO!
No fundo, sei que é por sua causa que nada deu errado, que o embrulho que há mais de dez anos deixei em sua porta hoje é um menino bonito e saudável, aquele que amo tanto. Mas não há como não odiá-lo ao ver os dois abraçados, conversando, ou apenas sorrindo um parar o outro. Não há como reagir sem rancor quando essa ferida tão dolorida é remexida desse jeito.
Eu deveria estar lá. Não ele.
Sinto minha barriga dar voltas, meu peito aperta, a garganta dói. Não aguento mais vir todos os dias aqui e ver a felicidade que deveria ter sido minha, se eu não tivesse sido tão covarde. Não aguento mais ainda ser covarde como naquela noite, não tendo coragem de fazer a única coisa que deveria fazer para recuperar o que é meu. E hoje eu posso sentir a raiva, a tristeza, a angústia, tudo explodir de vez. De repente, a figura de um pai carinhoso abraçando seu filho que
vejo pela janela não consegue mais me parar.
A porta está destrancada. Eles tomam um susto. Lógico, não deve ser todos os dias que um estranho com lágrimas escorrendo pela cara invade a casa deles. Eles me olham. Eu só tenho olhos para meu filho. E de repente ele entende e começa a chorar, também, e logo o outro também vê tudo e todos estamos chorando. Não nos tocamos, não ouso fazer isso, mesmo quando o outro, ainda com os olhos molhados deixa a sala e começa a fazer as malas.
Não sei quanto tempo se passa; nós dois não choramos mais, apenas nos olhamos, conhecendo-nos, tirando o atraso desses catorze anos que foram roubados de nós.
O outro volta, traz duas malas. Não nos despedimos; apenas pegamos, cada um, uma mala na mão e saímos pela porta. Na rua, pego sua mão; ela é quente, espanta o frio. Tomo coragem e me atrevo a mentir:
- Tudo ficará bem agora.