terça-feira, fevereiro 21, 2006

O Girassol

Do fedor explodiu o amarelo
sem contar de onde veio sua semente.
Não deu satisfação, apenas apareceu
por cima da água suja do esgoto
do matagal verde do esgoto
vencendo a lama e o mau cheiro

Chegou de supetão
e de um dia para o outro plantou-se
fazendo frente à fumaça dos carros
aos ônibus que passam de um lado e outro
aos prédios feios e de alma triste
às pessoas que passam sempre cegas e irritadas

Mas nada disso o derrota:
ele nasceu para erguer seu rosto orgulhoso
fitando o sol, num gesto zombeteiro
fazendo pouco da sujeira e do fedor
dos shoppings e igrejas e delegacias
dos carros e pessoas sem alma

Semana que vem talvez ele já tenha ido embora
como veio, sem ter explicações a dar
deixando só a saudade da vida
que por alguns momentos apagou a cidade morta.

sábado, fevereiro 11, 2006

Ele chegou devagar, sem anúncio, sem estardalhaço. Começou pelos detalhes; como era de se esperar, ninguém o notou enquanto ocupava apenas aquele cantinho atrás da porta; ninguém nunca reparava lá mesmo. Ninguém viu quando ele chegou também na parte de cima dos armários, debaixo do fogão e da geladeira.

Então, decidiu arriscar: derramou-se sobre as folhas e flores da varanda. As pessoas olharam para ele e finalmente notaram sua presença, e ele quase desfez-se de temor por seu futuro, ameçado por promessas de panos úmidos e vassouras. Mas eram apenas isso, promessas, e tão logo ele percebeu isso, espalhou-se sem pudor pela prataria, pela louça menos usada, pelas fotografias e recordações nos armários, nos livros raramente retirados de suas prateleiras.

Sua marcha agora não se detia por nada. Em vão, as pessoas finalmente saíram de sua inércia e entregaram-se a frenesis de limpeza, desinfetantes e espanadores. De nada adiantou: ele agarrava-se firmemente a cada milímetro de território conquistado, e o que era limpo pela manhã pela tarde já havia novamente sido ocupado novamente pelo adversário. Com uma paciência toda sua, avançava lentamente pela casa, invadindo a mesa ainda posta para o café, a cama até agorinha ocupada, o sofá em que se costumava deitar depois do almoço.

E então, um belo dia, acabou. Num momento de descuido, ninguém lembrou de colocar o pano debaixo da porta do último quarto intocado. Em instantes, ele insinuou-se para dentro com o vento, cobrindo tudo com seu cinzento melancólico, encardindo, sujando. As pessoas, desesperadas, não conseguiam acreditar em suas próprias peles cobertas de cinza, e tentavam remover a camada de pó que as sufocava cada vez mais. A água já não dava certo (o próprio chuveiro já estava entupido e dele só saia uma lama escura), e elas tentaram espanar-se, dar tapas na pele, arranhar-se, cortar-se com as unhas até verem o sangue misturar-se à poeira. Tarde demais. No fim, nada deu certo, e na casa restou só a tranquilidade cinzenta do esquecimento.