segunda-feira, janeiro 16, 2006

Primeiro Andar

(Rodrigo Amarante)

(Para ouvir a música, segure Shift e clique aqui)

já vou, será
eu quero ver
o mundo eu sei
não é esse lá

por onde andar
eu começo por onde a estrada vai
e não culpo a cidade, o pai

vou lá, andar
e o que eu vou ver
eu sei lá

não faz disso esse drama, essa dor
é que a sorte é preciso tirar pra ter
perigo é eu me esconder em você
e quando eu vou voltar, quem vai saber

se alguém numa curva me convidar
eu vou lá
que andar é reconhecer
olhar

eu preciso andar
um caminho só
vou buscar alguém
que eu nem sei quem sou

eu escrevo e te conto o que eu vi
e me mostro de lá pra você
guarde um sonho bom pra mim

eu preciso andar
um caminho só
vou buscar alguém
que eu nem sei quem sou

quarta-feira, janeiro 11, 2006

Romance em três atos (III)

III. Arlequim
Todos os dias acordo com a ânsia incontralável de falar com ele. De pedir desculpas pelo que fiz, de abraçá-lo chorando, de poder tirar esse peo do coração. De ficar do lado dele, onde é meu lugar de verdade. Então, eu tomo banho, arrumo-me o melhor que posso, e ando pela rua imaginando a cena do reencontro, ele me recebendo novamente de braços abertos.
E tudo escorre pelo ralo quando o vejo.
Às vezes ele está saindo de casa. Alguns dias, quando consigo chegar mais cedo, ainda posso vê-lo pela janela, do lado de dentro de casa, sozinho. Mas o pior é quando ele está com o outro. Aquele que, por culpa só minha, tomou meu lugar. Ou melhor, aquele para quem eu dei meu lugar, que soube ocupá-lo quando o abandonei.
EU O ODEIO!
No fundo, sei que é por sua causa que nada deu errado, que o embrulho que há mais de dez anos deixei em sua porta hoje é um menino bonito e saudável, aquele que amo tanto. Mas não há como não odiá-lo ao ver os dois abraçados, conversando, ou apenas sorrindo um parar o outro. Não há como reagir sem rancor quando essa ferida tão dolorida é remexida desse jeito.
Eu deveria estar lá. Não ele.
Sinto minha barriga dar voltas, meu peito aperta, a garganta dói. Não aguento mais vir todos os dias aqui e ver a felicidade que deveria ter sido minha, se eu não tivesse sido tão covarde. Não aguento mais ainda ser covarde como naquela noite, não tendo coragem de fazer a única coisa que deveria fazer para recuperar o que é meu. E hoje eu posso sentir a raiva, a tristeza, a angústia, tudo explodir de vez. De repente, a figura de um pai carinhoso abraçando seu filho que
vejo pela janela não consegue mais me parar.
A porta está destrancada. Eles tomam um susto. Lógico, não deve ser todos os dias que um estranho com lágrimas escorrendo pela cara invade a casa deles. Eles me olham. Eu só tenho olhos para meu filho. E de repente ele entende e começa a chorar, também, e logo o outro também vê tudo e todos estamos chorando. Não nos tocamos, não ouso fazer isso, mesmo quando o outro, ainda com os olhos molhados deixa a sala e começa a fazer as malas.
Não sei quanto tempo se passa; nós dois não choramos mais, apenas nos olhamos, conhecendo-nos, tirando o atraso desses catorze anos que foram roubados de nós.
O outro volta, traz duas malas. Não nos despedimos; apenas pegamos, cada um, uma mala na mão e saímos pela porta. Na rua, pego sua mão; ela é quente, espanta o frio. Tomo coragem e me atrevo a mentir:
- Tudo ficará bem agora.