domingo, novembro 27, 2005

Romance em três atos (I)

I. Pierrot
Quando eu menos esperava, ele apareceu; estava sobre um monte de trapos cortados, um colchão improvisado, numa cestinha de vime. Antes que o sol me acordasse às seis, como nos dias normais de outono, meus sonhos foram roubados por um choro alto, que deixou no lugar deles inquietação, curiosidade, e a preocupação de que a vizinhança também o ouvisse.
Pulei da cama e peguei apressado a primeira camisa e o primeiro rosto que achei. Não eram muito bons, de modo que a primeira visão que a madrugada teve de mim ao abrir a porta foi a de um espectro de camisa verde-cana e ar de noite de sábado insone e solitária. Foi contrariado com este começo ruim que agachei-me na luz dos postes para ver mais de perto o embrulho chorão.
Tinha a pele enrugada, os olhos apertados com força, uma garganta potente e um cheiro levemente azedo que não deixavam dúvidas sobre sua natureza. Nem bem ele me tinha sido dado (devo frisar que desde o primeiro encontro essa hipótese grudou na minha mente como a única possível), e já exigia algo de mim, uma compensação. Eu estava quase pensando que não era justo da parte dele, mas percebi antes que na verdade eu já o esperava há bastante tempo.
Uma sensação de... vazio acompanhava-me há mais tempo do que conseguia me lembrar, enuqanto eu buscava algo que não sabia bem o quê, algo que pudesse preenchê-lo. Era nisso que eu pensava enquanto tentava invocar, em vão, algum pensamento mau-humorado e ranzinza sobre os inumeráveis incômodos de abrigar em minha casa um filhote de qualquer-coisa. Mas quando aquele choro insistente começou a expulsar meu mal-estar crônico e tomar seu lugar em mim, sabia que já o havia aceitado, que pagaria de boa vontade qualquer preço que ele me cobrasse; e rendendo-me antes de começar realmente a lutar, tentava lembrar onde eu tinha guardado o leite em pó e trazia aquela cestinha para dentro, para a quentura (agora perigosamente familiar) da minha casa.

segunda-feira, novembro 21, 2005

Em homenagem à noite de ontem...

"A música e a palavra do fogo encantado, penduradas no cordão da grande feira, anunciam passagem do Palhaço sem Futuro. A combustão do som e os gestos da cena burlesca projetam luzes na pequena lona do circo. O círculo da vida. Declaramos o novo espetáculo do nosso desejo. Assumimos o palhaço como símbolo, com suas pinturas de guerra, seu passado ridículo, sua loucura fingida, sua alma impaciente. Sonho que caminha no mundo sem futuro e que faz do presente o fundamento de existência. Mesmo com a guerra na porta, com a lona rasgada e sob a tempestade sem fim, o espetáculo vai começar!" - Cordel do Fogo Encantado, encarte do CD "Palhaço do Circo sem Futuro"
----------------
Um Palhaço
----------------
Pinto meu rosto com as cores que todos os dias eles vêem no espelho. Faço da minha cara o retrato cruel do ridículo cotidiano de suas vidas. Os sorrisos insossos, as caretas fingidas, a apatia sonolenta. E tudo o que eles sabem fazer é achar tudo engraçado e gargalhar.

Durante toda uma noite torno-me o próprio absurdo que vejo em cada um deles. Sou a caricatura do mesquinho, do desesperado, do cínico, do inseguro, do suicida. Imito todas suas bobagens, suas vãs tentativas de fingir que estão vivos. E como eles se acabam de rir.

Vou ainda mais longe; na cara de cada uns deles, digo exatamente o que penso de suas idiotices. Mostro a cada um o quão humilhante é estar na pele dele, viver suas pequenas falsas emoções e sobressaltos. Grito que todos eles são uma corja de covardes, sem coragem sequer para assumir a própria farsa. Eles quase caem de suas arquibancadas, riem de se bolar.

Pergunto se eles estão achando se eu sou a porra de um palhaço, e mando todos à merda. O circo quase vem abaixo com as gargalhadas.

E então eu fico sério. Calado, encarando cada um deles. Lentamente, eles percebem que algo está errado, eu deveria estar rindo também, rindo de mim mesmo como eles. Pouco a pouco, eles param de rir, e começam a ficar tensos, desconfortáveis. E começam a se perguntar se tudo aquilo que fiz e disse era sério, se eles eram a piada, e não eu.

E então eu rio com toda a cena. Não posso evitar, é engraçado demais! De repente todos eles percebem que não são nada, que não passam de merda, até cara de merda eles fazem! É demais, eu rolo no chão gargalhando, eu não aguento com isso.

Alguns ainda tentam rir, um sorriso amarelo, sem graça. Disfarçar o mal-estar geral. Mas é tarde, o feitiço já foi feito, e todos eles saem do circo com uma ilusão a menos em suas vidas. E eu termino essa noite com umas risadas a mais.

domingo, novembro 13, 2005

Going to California

(J. Page - R. Plant)

Spent my days with a woman unkind
Smoke my stuff and drank all my wine
Made up my mind to make a new start
Going to California with an aching in my heart
Someone told me there's a girl out there
With love in her eyes and flowers in her hair
Took my chances on a big jet plane
Never let them tell you that they're all the same
The sea was red and the sky was grey
Wondered how tomorrow could ever follow today
The mountains and the canyons started to tremble and shake
As the children of the sun begin to awake
Seems that the wrath of the gods
Got a punch on the nose and started to flow
I think I might be sinking
Throw me a line if I reach it in time
I'll meet you up there
Where the path runs straight and high
To find a queen without a king
They say she plays guitar and cries and sings... La la la la
Riding a white mare in the footsteps of dawn
Trying to find a woman who's never been born
Standing on a hill in my mountain of dreams
Telling myself it´s not as hard, hard, hard as it seems

(In: Led Zeppelin - Four Symbols)

quarta-feira, novembro 09, 2005

Uma Nova Paisagem

Posso ver um novo céu. Diferente... Mas aqui na terra as coisas continuam como sempre.
.
.
.
Meu primeiro template! Tá tosco, mas tô feliz assim mesmo! :P
Agradecimentos especiais a Valds, que me passou o programa dos templates! Valeu! Êêêêêêêê!!!

quinta-feira, novembro 03, 2005

Dia de Finados

Nosso destino é a ilusão. Só porque a paisagem a nosso redor muda, achamos que estamos caminhando; "sempre em frente" é o nosso lema. Só quando é tarde demais é que percebemos que os passos que damos são do mundo que gira debaixo de nossos pés, e quando menos esperamos estamos de volta aos mesmos lugares. Fugir é andar em círculos, acho que já li ou ouvi isso em algum lugar.

Não há como não lembrar-me dessa frase agora. Eu parado em frente ao portão do cemitério, indiferente a tudo, a quem entra e sai chorando, ao sol escaldante do feriado, aos baldes de flores coloridas e coroas de mau gosto... Se pudesse me ver, tenho certeza de que descobriria que nada que faço, vejo ou sinto é novo, apenas a reprise de um filme de mau gosto que alguém esqueceu de tirar da programação.
No começo, nos primeiros anos, ainda me surpreendia por estar sempre no mesmo papel, repetindo as mesmas atitudes e gestos; hoje em dia já me acostumei com minha própria fraqueza. sei que não sou tão forte quanto passo o resto do ano a acreditar, que talvez nunca consiga ir para, de verdade, nunca mais voltar.
Como todas as vezes, fico parado ainda alguns minutos antes de entrar, com um buquê de mau gosto na mão. No começo, era a hesitação que me impedia de entrar logo; hoje, são apenas o cansaço e a força do hábito. Devagar, passo pela soleira, e caminho devagar por entre as árvores. Sei perfeitamente onde você está, sei como chegar lá, mas sei também que vou me perder, tenho que me perder. Apenas depois de uma ou duas voltas encontrarei você, ao mesmo tempo aliviado e desapontado comigo mesmo. Tudo isso eu vejo enquanto apenas acabei de entrar, nem comecei a percorrer as alamedas ainda. Mas não há como não adivinhar o final da história, principalmente tendo estado nela tantas e tantas vezes.
Logo depois de lhe encontrar, vou me achar estúpido por ainda não ter aprendido o caminho, e então ficarei simplesmente ali, parado à sua frente, sem saber o que dizer. Ficarei apenas te olhando, me perguntando porque estou lá. Por que vou de braços abertos ao encontro da dor, por que ainda insisto em repetir um encontro que não leva a nada, que só me faz sofrer, sempre? Aos poucos, querendo ou não, isso pouco importa, vou conseguir desenterrar tudo o que tenho conseguido manter escondido, oculto, reprimido por todos esses anos, as boas e más lembranças, todas elas dolorosas demais.
Sei que me sentirei confuso, que vou querer nunca ter lhe conhecido, nunca ter lhe encontrado, que iria preferir mil vezes não ter retornado aqui, ter ido embora antes de entrar num acesso de bom-senso, até mesmo ter ficado perdido para sempre aqui dentro, vagando sozinho entre túmulos desconhecidos, preferia tudo isso a não estar aqui hoje. Sei que de novo não saberei se devo te amar ou te odiar por tudo o que você fez e não fez. O que foi sua culpa no passado, o que foi minha. Lembrarei de todas as vezes em que você me decepcionou, me humilhou, brincou comigo, e de como mesmo sem que você pedisse fui idota em te perdoar, em fingir que esquecia, fazia de conta que não era nada.
Começo minha caminhada dentro do cemitério ao mesmo tempo que continuo a lembrar o que vai acontecer. Vou começar a chorar, mas no começo ninguém vai perceber por causa dos óculos escuros. Só quando eu me ajoelhar sujando minha calça, e com a mão escondendo o rosto vou começar a soluçar. O buquê vai ter terminado de se desfazer no chão, onde ele tiver caído, e eu não saberei porque estou fazendo isso. Não consigo, não conseguirei entender como algo tão velho, que já aconteceu há tanto tempo, ainda faz isso comigo.
Ando pela primeira entrada errada no caminho, vou até onde sempre percebo que estou no caminho errado, e começo a caminhar de volta, acho que estou na metade do caminho agora. Depois da confusão, só virá a vontade de que você não tivesse ido embora desse jeito, me humilhando até com sua morte, que apesar de tudo o que você me fez eu ainda queria lhe ver, e não apenas ler o seu nome numa placa de pedra. Vou estar chorando como uma criança, e um desconhecido amável se oferecerá para me arranjar um copo d'água, me acompanhar a meu carro. Vou responder que não precisa, que tudo está bem; darei as costas para você, comecerei a caminhar em direção à saída fungando e limpando as lágrimas. Então simplesmente vou perder de novo o controle, sair correndo, esbarrando nas pessoas, até meu carro, e dirigir feito um maluco até em casa.
Agora, parado em frente a seu túmulo, sei que daqui a uma hora estarei encolhido em minha cama, chorando e prometendo a mim mesmo que isso nunca mais vai se repetir, que não há motivo para reviver esse sofrimento mais uma vez. De tarde eu vou estar melhor, talvez vá ao cinema, dê um pulo na praia. Vou fingir que esqueci tudo, que nunca mais vou voltar pra te ver. A farsa vai durar até o próximo ano, quando sem saber porque, vou pegar o carro e vir aqui mais uma vez. E tudo vai se repetir, ano que vem, e no outro, e em todos os outros até o fim.
Tudo isso vem como um bolo na garganta, saber que estou preso e não posso escapar. As primeiras lágrimas já caem. Daqui a pouco não conseguirei pensar em nada, não perceberei mais como tudo se repete, a dor não vai deixar que eu perceba qualquer outra coisa. Por isso, aproveito enquanto me resta um pouco de autocontrole e me despeço agora, porque sei que quando eu for embora, fugir correndo, vou estar desesperado demais para pensar nisso. Adeus, meu amor, penso um pouco antes de me ajoelhar e soluçar, te vejo de novo ano que vem.