quinta-feira, novembro 03, 2005

Dia de Finados

Nosso destino é a ilusão. Só porque a paisagem a nosso redor muda, achamos que estamos caminhando; "sempre em frente" é o nosso lema. Só quando é tarde demais é que percebemos que os passos que damos são do mundo que gira debaixo de nossos pés, e quando menos esperamos estamos de volta aos mesmos lugares. Fugir é andar em círculos, acho que já li ou ouvi isso em algum lugar.

Não há como não lembrar-me dessa frase agora. Eu parado em frente ao portão do cemitério, indiferente a tudo, a quem entra e sai chorando, ao sol escaldante do feriado, aos baldes de flores coloridas e coroas de mau gosto... Se pudesse me ver, tenho certeza de que descobriria que nada que faço, vejo ou sinto é novo, apenas a reprise de um filme de mau gosto que alguém esqueceu de tirar da programação.
No começo, nos primeiros anos, ainda me surpreendia por estar sempre no mesmo papel, repetindo as mesmas atitudes e gestos; hoje em dia já me acostumei com minha própria fraqueza. sei que não sou tão forte quanto passo o resto do ano a acreditar, que talvez nunca consiga ir para, de verdade, nunca mais voltar.
Como todas as vezes, fico parado ainda alguns minutos antes de entrar, com um buquê de mau gosto na mão. No começo, era a hesitação que me impedia de entrar logo; hoje, são apenas o cansaço e a força do hábito. Devagar, passo pela soleira, e caminho devagar por entre as árvores. Sei perfeitamente onde você está, sei como chegar lá, mas sei também que vou me perder, tenho que me perder. Apenas depois de uma ou duas voltas encontrarei você, ao mesmo tempo aliviado e desapontado comigo mesmo. Tudo isso eu vejo enquanto apenas acabei de entrar, nem comecei a percorrer as alamedas ainda. Mas não há como não adivinhar o final da história, principalmente tendo estado nela tantas e tantas vezes.
Logo depois de lhe encontrar, vou me achar estúpido por ainda não ter aprendido o caminho, e então ficarei simplesmente ali, parado à sua frente, sem saber o que dizer. Ficarei apenas te olhando, me perguntando porque estou lá. Por que vou de braços abertos ao encontro da dor, por que ainda insisto em repetir um encontro que não leva a nada, que só me faz sofrer, sempre? Aos poucos, querendo ou não, isso pouco importa, vou conseguir desenterrar tudo o que tenho conseguido manter escondido, oculto, reprimido por todos esses anos, as boas e más lembranças, todas elas dolorosas demais.
Sei que me sentirei confuso, que vou querer nunca ter lhe conhecido, nunca ter lhe encontrado, que iria preferir mil vezes não ter retornado aqui, ter ido embora antes de entrar num acesso de bom-senso, até mesmo ter ficado perdido para sempre aqui dentro, vagando sozinho entre túmulos desconhecidos, preferia tudo isso a não estar aqui hoje. Sei que de novo não saberei se devo te amar ou te odiar por tudo o que você fez e não fez. O que foi sua culpa no passado, o que foi minha. Lembrarei de todas as vezes em que você me decepcionou, me humilhou, brincou comigo, e de como mesmo sem que você pedisse fui idota em te perdoar, em fingir que esquecia, fazia de conta que não era nada.
Começo minha caminhada dentro do cemitério ao mesmo tempo que continuo a lembrar o que vai acontecer. Vou começar a chorar, mas no começo ninguém vai perceber por causa dos óculos escuros. Só quando eu me ajoelhar sujando minha calça, e com a mão escondendo o rosto vou começar a soluçar. O buquê vai ter terminado de se desfazer no chão, onde ele tiver caído, e eu não saberei porque estou fazendo isso. Não consigo, não conseguirei entender como algo tão velho, que já aconteceu há tanto tempo, ainda faz isso comigo.
Ando pela primeira entrada errada no caminho, vou até onde sempre percebo que estou no caminho errado, e começo a caminhar de volta, acho que estou na metade do caminho agora. Depois da confusão, só virá a vontade de que você não tivesse ido embora desse jeito, me humilhando até com sua morte, que apesar de tudo o que você me fez eu ainda queria lhe ver, e não apenas ler o seu nome numa placa de pedra. Vou estar chorando como uma criança, e um desconhecido amável se oferecerá para me arranjar um copo d'água, me acompanhar a meu carro. Vou responder que não precisa, que tudo está bem; darei as costas para você, comecerei a caminhar em direção à saída fungando e limpando as lágrimas. Então simplesmente vou perder de novo o controle, sair correndo, esbarrando nas pessoas, até meu carro, e dirigir feito um maluco até em casa.
Agora, parado em frente a seu túmulo, sei que daqui a uma hora estarei encolhido em minha cama, chorando e prometendo a mim mesmo que isso nunca mais vai se repetir, que não há motivo para reviver esse sofrimento mais uma vez. De tarde eu vou estar melhor, talvez vá ao cinema, dê um pulo na praia. Vou fingir que esqueci tudo, que nunca mais vou voltar pra te ver. A farsa vai durar até o próximo ano, quando sem saber porque, vou pegar o carro e vir aqui mais uma vez. E tudo vai se repetir, ano que vem, e no outro, e em todos os outros até o fim.
Tudo isso vem como um bolo na garganta, saber que estou preso e não posso escapar. As primeiras lágrimas já caem. Daqui a pouco não conseguirei pensar em nada, não perceberei mais como tudo se repete, a dor não vai deixar que eu perceba qualquer outra coisa. Por isso, aproveito enquanto me resta um pouco de autocontrole e me despeço agora, porque sei que quando eu for embora, fugir correndo, vou estar desesperado demais para pensar nisso. Adeus, meu amor, penso um pouco antes de me ajoelhar e soluçar, te vejo de novo ano que vem.

2 comentários:

Anônimo disse...

Cara, passei o dia todo com esse texto na cabeca. Tudo que tenho a dizer.

Anônimo disse...

O passado não vive em covas, contudo se esgueira entre a insônia e a loucura.

Sinto por não te levar flores, pois sua lápide, feita da própria carne putrefada e inerte, ainda perambula ao meu redor, trazendo-me a insensatez e o incômodo de viver daquilo que não mais reage, impera ou soluça...

Assim, apenas da falta de convicção, seguindo a compaixão aos que aqui morrem em vida, não poderá surgir o caos libertador, mas também não se seguirá o seu julgamento em rito célere...

Permanecerá estático, sombrio e inanimado até que as correntes fúnebres e mal lavadas finalmente se tornem ferrugem, pó e ventania...