sexta-feira, maio 19, 2006

Borboletas

Pelos olhos de Bete, a cena toda é um milagre. É um fim de tarde e faz sol, uma surpresa na época de chuvas que já começou, e ela sentada num banco da praça, a brisa fresquinha, não faz calor. Ela quer uma boa notícia, embora espere por uma desilusão; suas mãos abrem e fecham a bolsa a todo momento, mesmo o celular não tendo tocado.

E começa. São dezenas de borboletas amarelas, todas juntas, bem à sua frente. Elas não passam por ela simplesmente, como seria de se esperar, mas escolhem ficar lá, só para ela. Ou pelo menos é o que Bete pensa; é só nisso que consegue pensar enquanto, com lágrimas nos olhos, esquece por um momento a angústia que a persegue há semanas. Mal percebe quando o celular toca em suas mãos, atende sem desgrudar os olhos da revoada de borboletas - é essa a palavra, revoada? Ela não sabe, e o encanto não deixa espaço para que ela pense mais nisso, só permite que ela ouça as palavras, quase gritadas, que chegam pelo telefone:

"Deu certo, ele etá bem!"

O clichê completa-se com o aparelho caindo no chão, Bete ajoelhando-se e agradecendo a Deus o milagre, toda riso e lágrimas. As borboletas vão embora, mas já cumpriram seu papel de portadoras da boa nova. Elas não precisam mais estar ali, não precisam mais existir: já são uma memória que Bete carregará para sempre. Por causa dela, Bete voltará a ir à Igreja, batizará os filhos, brigará com o marido nos domingos de manhã. Acenderá velas e incensos, rezará orações diárias.

E sempre que vir uma borboleta amarela, lembrará com carinho do dia em que uma vida que julgava perdida foi ganha de volta. E agradecerá silenciosamente às pequenas borboletas que trouxeram de volta uma alegria que não esperava rever. QUando for velha, ensinará a seus netos que uma borboleta é um sinal de Deus.

Mas e elas? E as borboletas, o que pensam disso?

Será que elas sabem da alegria de Bete, será que elas ligam para a mulher que transformou o desespero em felicidade, que grita um obrigado para o céu?

Uma revoada de borboletas - assim como Bete, elas não ligam se é essa a palavra - se importa com as flores, fonte de alimento, com os pássaros, aranhas e sapos, seus predadores, e com a possibilidade de acasalamento, seu objetivo de vida. O resto não faz o menor sentido.

Bete se preocupa se estas borboletas que ela vê não são nem um décimo do que os ovos que uma única delas botaria em um dia? Que havia o dobro delas há uma semana atrás? Que daqui a alguns dias não haverá mais nenhuma delas, apenas os ovos que as mais fortes conseguirão pôr, que vão chocar em larvas e repetir talvez para sempre esse ciclo?

Pelo contrário: a Bete não importam a vida e morte das borboletas. Por ingenuidade, às vezes põe-se a imaginar se elas ainda não estariam por aí, levando milagres a mais filhos e filhas de Deus. Chega a reconhecer dez, vinte anos mais tarde uma daquelas mensageiras nas manchinhas amarelas esvoaçantes de cada primavera, ingênua, ignorando suas mortes - trágicas? Não, falta tragédia na vida das borboletas.

E assim as borboletas também nada sabem de Bete, que era apenas uma pedra engraçada que protegia contra o vento. Para as borboletas não há mensagem, não há milagre, há apenas a vida que não se consegue entender.