sexta-feira, dezembro 23, 2005

Romance em três atos (II)

II. Colombina

De repente, percebo que ele está olhando de novo para mim daquele jeito de novo. Como se nunca tivesse me visto na vida mas quisesse me falar algum troço. Ele sabe que isso me deixa com vergonha, mas sempre faz isso. Eu reclamo, digo que não gosto, mas nunca adianta.

Na verdade... Não é que eu não goste. É que me faz sentir um pouco... estranho, sei lá, algo que não estou acostumado a sentir. É um arrepio no peito que esquenta e depois esfria, me faz sentir bem mas ao mesmo tempo me faz querer estar do lado dele, agarrado como quando eu tinha três anos, cinco anos, sei lá, algo assim. Mas não posso mais fazer isso o tempo todo, não posso pedir colo toda vez que estou triste, dormir na mesma cama dele quando estou com medo. Já tenho catorze anos, não sou mais um menininho chorão, as pessoas estranhariam se eu continuasse a fazer isso.

Mas sinto saudade às vezes. Como agora.

Agora ele vai perceber o estrago que fez, porque eu devo estar com uma cara totalmente contrariada. Eu também sei o que ele vai fazer depois disso: vai me chamar pra sentar no sofá com ele, vai me abraçar (acho que isso a gente ainda pode fazer, pelo menos enquanto a gente tá sozinho), e vai me contar de novo a história de quando a gente se encontrou pela primeira vez. Já ouvi essa história umas doze mil vezes, mas nunca enjôo. Pelo menos, é um pretexto pra não ter que disfarçar que gosto dele.

Ele me fala da cestinha, da confusão pra achar leite, de como eu nunca dormia e sempre chorava, mas de como eu tomei a vacina sem chorar. E então a gente vai ficar calado um pouco, só aproveitando a presença e o contato um do outro. Isso é diferente de quando eu era pequeno; é mais... maduro, acho, é um sentimento diferente. Eu gosto disso, de a gente se amar diferente agora que cresci.

Mas nunca dura muito, eu me levanto e vou pro meu quarto, ele sai de casa e diz que volta pro jantar. De noite comemos juntos, e a gente vai dormir sem muita conversa. E a gente fica assim, meio distante como é normal, até chegar outro dia em que ele me olha daquele jeito e não dá mais pra fingir que não sei que tenho alguém que me ama. E fico ansioso pra esse dia chegar novamente.

sábado, dezembro 03, 2005

Estranhamento

Quem é o dono desse olhar
que o dirige a mim desse jeito,
essa interrogação e riso juntos?

Quem é o dono desses olhos
castanhos, escuros, profundos,
querendo contar tantos segredos?

A quem pertence essa boca
os cantos para cima num sorriso
que mais se adivinha que se vê?

E esse corpo, pequeno e magro
de uma beleza tão estranha
que acho que ninguém mais vê?

E a tristeza? A alegria?
A surpresa de ver tudo isso
e descobrir que não entende?

Não é esse espelho, que só faz
devolver-me o que emprestei...
Sou eu mesmo esse estranho,
me conheço agora e gosto do que vejo.