sexta-feira, dezembro 23, 2005

Romance em três atos (II)

II. Colombina

De repente, percebo que ele está olhando de novo para mim daquele jeito de novo. Como se nunca tivesse me visto na vida mas quisesse me falar algum troço. Ele sabe que isso me deixa com vergonha, mas sempre faz isso. Eu reclamo, digo que não gosto, mas nunca adianta.

Na verdade... Não é que eu não goste. É que me faz sentir um pouco... estranho, sei lá, algo que não estou acostumado a sentir. É um arrepio no peito que esquenta e depois esfria, me faz sentir bem mas ao mesmo tempo me faz querer estar do lado dele, agarrado como quando eu tinha três anos, cinco anos, sei lá, algo assim. Mas não posso mais fazer isso o tempo todo, não posso pedir colo toda vez que estou triste, dormir na mesma cama dele quando estou com medo. Já tenho catorze anos, não sou mais um menininho chorão, as pessoas estranhariam se eu continuasse a fazer isso.

Mas sinto saudade às vezes. Como agora.

Agora ele vai perceber o estrago que fez, porque eu devo estar com uma cara totalmente contrariada. Eu também sei o que ele vai fazer depois disso: vai me chamar pra sentar no sofá com ele, vai me abraçar (acho que isso a gente ainda pode fazer, pelo menos enquanto a gente tá sozinho), e vai me contar de novo a história de quando a gente se encontrou pela primeira vez. Já ouvi essa história umas doze mil vezes, mas nunca enjôo. Pelo menos, é um pretexto pra não ter que disfarçar que gosto dele.

Ele me fala da cestinha, da confusão pra achar leite, de como eu nunca dormia e sempre chorava, mas de como eu tomei a vacina sem chorar. E então a gente vai ficar calado um pouco, só aproveitando a presença e o contato um do outro. Isso é diferente de quando eu era pequeno; é mais... maduro, acho, é um sentimento diferente. Eu gosto disso, de a gente se amar diferente agora que cresci.

Mas nunca dura muito, eu me levanto e vou pro meu quarto, ele sai de casa e diz que volta pro jantar. De noite comemos juntos, e a gente vai dormir sem muita conversa. E a gente fica assim, meio distante como é normal, até chegar outro dia em que ele me olha daquele jeito e não dá mais pra fingir que não sei que tenho alguém que me ama. E fico ansioso pra esse dia chegar novamente.

sábado, dezembro 03, 2005

Estranhamento

Quem é o dono desse olhar
que o dirige a mim desse jeito,
essa interrogação e riso juntos?

Quem é o dono desses olhos
castanhos, escuros, profundos,
querendo contar tantos segredos?

A quem pertence essa boca
os cantos para cima num sorriso
que mais se adivinha que se vê?

E esse corpo, pequeno e magro
de uma beleza tão estranha
que acho que ninguém mais vê?

E a tristeza? A alegria?
A surpresa de ver tudo isso
e descobrir que não entende?

Não é esse espelho, que só faz
devolver-me o que emprestei...
Sou eu mesmo esse estranho,
me conheço agora e gosto do que vejo.

domingo, novembro 27, 2005

Romance em três atos (I)

I. Pierrot
Quando eu menos esperava, ele apareceu; estava sobre um monte de trapos cortados, um colchão improvisado, numa cestinha de vime. Antes que o sol me acordasse às seis, como nos dias normais de outono, meus sonhos foram roubados por um choro alto, que deixou no lugar deles inquietação, curiosidade, e a preocupação de que a vizinhança também o ouvisse.
Pulei da cama e peguei apressado a primeira camisa e o primeiro rosto que achei. Não eram muito bons, de modo que a primeira visão que a madrugada teve de mim ao abrir a porta foi a de um espectro de camisa verde-cana e ar de noite de sábado insone e solitária. Foi contrariado com este começo ruim que agachei-me na luz dos postes para ver mais de perto o embrulho chorão.
Tinha a pele enrugada, os olhos apertados com força, uma garganta potente e um cheiro levemente azedo que não deixavam dúvidas sobre sua natureza. Nem bem ele me tinha sido dado (devo frisar que desde o primeiro encontro essa hipótese grudou na minha mente como a única possível), e já exigia algo de mim, uma compensação. Eu estava quase pensando que não era justo da parte dele, mas percebi antes que na verdade eu já o esperava há bastante tempo.
Uma sensação de... vazio acompanhava-me há mais tempo do que conseguia me lembrar, enuqanto eu buscava algo que não sabia bem o quê, algo que pudesse preenchê-lo. Era nisso que eu pensava enquanto tentava invocar, em vão, algum pensamento mau-humorado e ranzinza sobre os inumeráveis incômodos de abrigar em minha casa um filhote de qualquer-coisa. Mas quando aquele choro insistente começou a expulsar meu mal-estar crônico e tomar seu lugar em mim, sabia que já o havia aceitado, que pagaria de boa vontade qualquer preço que ele me cobrasse; e rendendo-me antes de começar realmente a lutar, tentava lembrar onde eu tinha guardado o leite em pó e trazia aquela cestinha para dentro, para a quentura (agora perigosamente familiar) da minha casa.

segunda-feira, novembro 21, 2005

Em homenagem à noite de ontem...

"A música e a palavra do fogo encantado, penduradas no cordão da grande feira, anunciam passagem do Palhaço sem Futuro. A combustão do som e os gestos da cena burlesca projetam luzes na pequena lona do circo. O círculo da vida. Declaramos o novo espetáculo do nosso desejo. Assumimos o palhaço como símbolo, com suas pinturas de guerra, seu passado ridículo, sua loucura fingida, sua alma impaciente. Sonho que caminha no mundo sem futuro e que faz do presente o fundamento de existência. Mesmo com a guerra na porta, com a lona rasgada e sob a tempestade sem fim, o espetáculo vai começar!" - Cordel do Fogo Encantado, encarte do CD "Palhaço do Circo sem Futuro"
----------------
Um Palhaço
----------------
Pinto meu rosto com as cores que todos os dias eles vêem no espelho. Faço da minha cara o retrato cruel do ridículo cotidiano de suas vidas. Os sorrisos insossos, as caretas fingidas, a apatia sonolenta. E tudo o que eles sabem fazer é achar tudo engraçado e gargalhar.

Durante toda uma noite torno-me o próprio absurdo que vejo em cada um deles. Sou a caricatura do mesquinho, do desesperado, do cínico, do inseguro, do suicida. Imito todas suas bobagens, suas vãs tentativas de fingir que estão vivos. E como eles se acabam de rir.

Vou ainda mais longe; na cara de cada uns deles, digo exatamente o que penso de suas idiotices. Mostro a cada um o quão humilhante é estar na pele dele, viver suas pequenas falsas emoções e sobressaltos. Grito que todos eles são uma corja de covardes, sem coragem sequer para assumir a própria farsa. Eles quase caem de suas arquibancadas, riem de se bolar.

Pergunto se eles estão achando se eu sou a porra de um palhaço, e mando todos à merda. O circo quase vem abaixo com as gargalhadas.

E então eu fico sério. Calado, encarando cada um deles. Lentamente, eles percebem que algo está errado, eu deveria estar rindo também, rindo de mim mesmo como eles. Pouco a pouco, eles param de rir, e começam a ficar tensos, desconfortáveis. E começam a se perguntar se tudo aquilo que fiz e disse era sério, se eles eram a piada, e não eu.

E então eu rio com toda a cena. Não posso evitar, é engraçado demais! De repente todos eles percebem que não são nada, que não passam de merda, até cara de merda eles fazem! É demais, eu rolo no chão gargalhando, eu não aguento com isso.

Alguns ainda tentam rir, um sorriso amarelo, sem graça. Disfarçar o mal-estar geral. Mas é tarde, o feitiço já foi feito, e todos eles saem do circo com uma ilusão a menos em suas vidas. E eu termino essa noite com umas risadas a mais.

domingo, novembro 13, 2005

Going to California

(J. Page - R. Plant)

Spent my days with a woman unkind
Smoke my stuff and drank all my wine
Made up my mind to make a new start
Going to California with an aching in my heart
Someone told me there's a girl out there
With love in her eyes and flowers in her hair
Took my chances on a big jet plane
Never let them tell you that they're all the same
The sea was red and the sky was grey
Wondered how tomorrow could ever follow today
The mountains and the canyons started to tremble and shake
As the children of the sun begin to awake
Seems that the wrath of the gods
Got a punch on the nose and started to flow
I think I might be sinking
Throw me a line if I reach it in time
I'll meet you up there
Where the path runs straight and high
To find a queen without a king
They say she plays guitar and cries and sings... La la la la
Riding a white mare in the footsteps of dawn
Trying to find a woman who's never been born
Standing on a hill in my mountain of dreams
Telling myself it´s not as hard, hard, hard as it seems

(In: Led Zeppelin - Four Symbols)

quarta-feira, novembro 09, 2005

Uma Nova Paisagem

Posso ver um novo céu. Diferente... Mas aqui na terra as coisas continuam como sempre.
.
.
.
Meu primeiro template! Tá tosco, mas tô feliz assim mesmo! :P
Agradecimentos especiais a Valds, que me passou o programa dos templates! Valeu! Êêêêêêêê!!!

quinta-feira, novembro 03, 2005

Dia de Finados

Nosso destino é a ilusão. Só porque a paisagem a nosso redor muda, achamos que estamos caminhando; "sempre em frente" é o nosso lema. Só quando é tarde demais é que percebemos que os passos que damos são do mundo que gira debaixo de nossos pés, e quando menos esperamos estamos de volta aos mesmos lugares. Fugir é andar em círculos, acho que já li ou ouvi isso em algum lugar.

Não há como não lembrar-me dessa frase agora. Eu parado em frente ao portão do cemitério, indiferente a tudo, a quem entra e sai chorando, ao sol escaldante do feriado, aos baldes de flores coloridas e coroas de mau gosto... Se pudesse me ver, tenho certeza de que descobriria que nada que faço, vejo ou sinto é novo, apenas a reprise de um filme de mau gosto que alguém esqueceu de tirar da programação.
No começo, nos primeiros anos, ainda me surpreendia por estar sempre no mesmo papel, repetindo as mesmas atitudes e gestos; hoje em dia já me acostumei com minha própria fraqueza. sei que não sou tão forte quanto passo o resto do ano a acreditar, que talvez nunca consiga ir para, de verdade, nunca mais voltar.
Como todas as vezes, fico parado ainda alguns minutos antes de entrar, com um buquê de mau gosto na mão. No começo, era a hesitação que me impedia de entrar logo; hoje, são apenas o cansaço e a força do hábito. Devagar, passo pela soleira, e caminho devagar por entre as árvores. Sei perfeitamente onde você está, sei como chegar lá, mas sei também que vou me perder, tenho que me perder. Apenas depois de uma ou duas voltas encontrarei você, ao mesmo tempo aliviado e desapontado comigo mesmo. Tudo isso eu vejo enquanto apenas acabei de entrar, nem comecei a percorrer as alamedas ainda. Mas não há como não adivinhar o final da história, principalmente tendo estado nela tantas e tantas vezes.
Logo depois de lhe encontrar, vou me achar estúpido por ainda não ter aprendido o caminho, e então ficarei simplesmente ali, parado à sua frente, sem saber o que dizer. Ficarei apenas te olhando, me perguntando porque estou lá. Por que vou de braços abertos ao encontro da dor, por que ainda insisto em repetir um encontro que não leva a nada, que só me faz sofrer, sempre? Aos poucos, querendo ou não, isso pouco importa, vou conseguir desenterrar tudo o que tenho conseguido manter escondido, oculto, reprimido por todos esses anos, as boas e más lembranças, todas elas dolorosas demais.
Sei que me sentirei confuso, que vou querer nunca ter lhe conhecido, nunca ter lhe encontrado, que iria preferir mil vezes não ter retornado aqui, ter ido embora antes de entrar num acesso de bom-senso, até mesmo ter ficado perdido para sempre aqui dentro, vagando sozinho entre túmulos desconhecidos, preferia tudo isso a não estar aqui hoje. Sei que de novo não saberei se devo te amar ou te odiar por tudo o que você fez e não fez. O que foi sua culpa no passado, o que foi minha. Lembrarei de todas as vezes em que você me decepcionou, me humilhou, brincou comigo, e de como mesmo sem que você pedisse fui idota em te perdoar, em fingir que esquecia, fazia de conta que não era nada.
Começo minha caminhada dentro do cemitério ao mesmo tempo que continuo a lembrar o que vai acontecer. Vou começar a chorar, mas no começo ninguém vai perceber por causa dos óculos escuros. Só quando eu me ajoelhar sujando minha calça, e com a mão escondendo o rosto vou começar a soluçar. O buquê vai ter terminado de se desfazer no chão, onde ele tiver caído, e eu não saberei porque estou fazendo isso. Não consigo, não conseguirei entender como algo tão velho, que já aconteceu há tanto tempo, ainda faz isso comigo.
Ando pela primeira entrada errada no caminho, vou até onde sempre percebo que estou no caminho errado, e começo a caminhar de volta, acho que estou na metade do caminho agora. Depois da confusão, só virá a vontade de que você não tivesse ido embora desse jeito, me humilhando até com sua morte, que apesar de tudo o que você me fez eu ainda queria lhe ver, e não apenas ler o seu nome numa placa de pedra. Vou estar chorando como uma criança, e um desconhecido amável se oferecerá para me arranjar um copo d'água, me acompanhar a meu carro. Vou responder que não precisa, que tudo está bem; darei as costas para você, comecerei a caminhar em direção à saída fungando e limpando as lágrimas. Então simplesmente vou perder de novo o controle, sair correndo, esbarrando nas pessoas, até meu carro, e dirigir feito um maluco até em casa.
Agora, parado em frente a seu túmulo, sei que daqui a uma hora estarei encolhido em minha cama, chorando e prometendo a mim mesmo que isso nunca mais vai se repetir, que não há motivo para reviver esse sofrimento mais uma vez. De tarde eu vou estar melhor, talvez vá ao cinema, dê um pulo na praia. Vou fingir que esqueci tudo, que nunca mais vou voltar pra te ver. A farsa vai durar até o próximo ano, quando sem saber porque, vou pegar o carro e vir aqui mais uma vez. E tudo vai se repetir, ano que vem, e no outro, e em todos os outros até o fim.
Tudo isso vem como um bolo na garganta, saber que estou preso e não posso escapar. As primeiras lágrimas já caem. Daqui a pouco não conseguirei pensar em nada, não perceberei mais como tudo se repete, a dor não vai deixar que eu perceba qualquer outra coisa. Por isso, aproveito enquanto me resta um pouco de autocontrole e me despeço agora, porque sei que quando eu for embora, fugir correndo, vou estar desesperado demais para pensar nisso. Adeus, meu amor, penso um pouco antes de me ajoelhar e soluçar, te vejo de novo ano que vem.

segunda-feira, outubro 24, 2005

Encontro no trem

O trem pára à minha frente; logo, uma fila de pessoas se empurrando e gritando umas com as outras se forma. Como não é o meu, fico no mesmo lugar que estou, sentado em um banco de madeira na estação. Mas não volto a ler o livro que agora reposa aberto em meu colo, meus olhos agora ocupados com uma das janelas do trem.

Do outro lado do vidro, outra pessoa olha para fora. Fitando o vazio, de forma vaga, pensativa, sem ligar muito para o mundo à sua volta, mais preocupado com... Com o quê? É engraçado, não consigo imaginar no que ele poderia estar pensando, embora com certeza seja algo que qualquer pessoa poderia pensar; não sei porque, não consigo vê-lo tentando imaginar que horas o trem vai chegar, como estará a família que vai encontrar (ou que deixou), o que vai fazer hoje à noite... Ele é um completo mistério para mim, e acho que é isso que me fascina.

Percebo que não consigo desviar meus olhos dele. É engraçado como essas coisas acontecem sem previsão; menos de trinta segundos encarando um estranho através de uma janela e já estou enfeitiçado. Rio sozinho com a descoberta de um sentimento sem razão, e não sei porque meu riso atrai sua atenção. Do vazio, seus olhos passam para mim, primeiro com curiosidade, depois... Com algo mais? Ou será que isso é só o que quero?

Não sei dizer, mais uma vez, o que significa seu olhar. Se ele continua me olhando apenas por curiosidade, por estar imaginando que tipo de pessoa encara outra em um trem e ri sozinho; se estranha minha atitude, sentindo-se desconfortável com um estranho que não pára de encará-lo; ou se olha para mim com o mesmo interesse que eu. Se esse olhar é uma interrogação, repulsa... Ou um convite.

Rapidamente, ele desvia o rosto, voltadoa gora para o outro lado, para dentro do trem. Já sem nenhum sorriso, sinto-me completamente estúpido. Irritado, pego meu livro e guardo-o na mochila. Como uma pessoa pode ser tão idiota, tão ingênua? Olho novamente para a frente e penso, por que esse trem ainda não foi embora, e ele está me olhando novamente.

Não sei o que fazer. Não consigo desviar meu olhar do dele, e fico cada vez mais intrigado. Eu nunca fui bom em adivinhações, e não sei se vejo nesse olhar uma chance ou um mal-entendido. Normalmente, eu costumo ficar com a segunda hipótese; mas... Eu não sempre me arrependo disso depois? Não fico achando que deveria ter apostado no improvável quando preferi não arriscar? Cato meus bolsos atrás da passagem para o meu trem, e assim que a encontro ele chega.

Agora a dúvida fica mais séria. Pelo menos uns dois minutos se passaram com o outro trem parado, e como a fila do meu está surpreendentemente pequena, ele não vai demorar muito na estação. Eu poderia ir no guichê trocar minha passagem por outra, e fazer companhia ao estranho que pareço já conhecer, mas estaria me arriscando a voltar ao embarque quando ambos já tivessem partido. Ou pior, conseguir trocar a passagem, embarcar no outro trem, e descobrir que tudo não havia passado de um mal-entendido, e ter que passar meia hora de viagem arrependido e morrendo de vergonha, apenas para ter que pagar mais uma passagem para chegar (atrasado) ao meu destino. Mas ele continua me olhando, não é possível que isso aconteça... Ou é? QUero dizer, quais as chances reais de eu entrar no trem, sentar-me a seu lado e ele simplesmente ignorar-me o resto da viagem, olhando para fora exatamente como está fazendo agora?

Contrariado, decido que não vale a pena arriscar; assim que decido não ir, como num passe de mágica, o trem fecha as portas e parte. Suspiro aliviado; mesmo que eu estivesse errado, que eu tivesse encontrado inesperadamente uma companhia, simplesmente não teria dado certo. O trem já teria partido quando eu voltasse. Talvez se eu não tivesse hesitado tanto... Mas olho para o tamanho monstruoso da fila da compra de passagens e penso que nem que eu tivesse ido para lá assim que o trem tivesse chegado não teria dado tempo.

Pego minha mochila e minha mala e entro no meu trem. Procuro uma poltrona na janela e passo a viagem olhando para fora e ouvindo música. Tento continuar a ler meu livro umas duas vezes, mas o balanço do trem começa a me dar dor de cabeça, e não quero correr o risco de enjoar na viagem. Passo então o tempo pensando naquele estranho que eu estava destinado a não conhecer. Mesmo sabendo que não conseguiria, sinto-me frustrado por não haver tentado. Não sei o porquê de me sentir assim, apenas... Apenas mais uma vez eu tive a oportunidade de arriscar e não o fiz. Enquanto lá fora as árvores e os postes passam rápido, me arrependo de mais uma vez não ter feito a escolha errada.

sábado, outubro 15, 2005

Carta para o Amor Futuro

Não posso pedir que se lembre
de alguém que você nunca viu.
Não se pode guardar na memória
as tardes que nunca passamos juntos,
os beijos de amor que nunca demos,
as juras que nunca foram ditas.

Nem posso querer que espere
alguém que nunca disse que viria.
Não há razão para você aguardar
impaciente, andando pelos cantos,
um telefonema ou uma visita
de quem você nem sabe quem é.

Não espero que me reconheça
quando nos cruzamos na rua.
Como você iria adivinhar que são meus
esse rosto, essa roupa, essa voz,
esses gestos ansiosos, se nem eu
imagino quem você é ou pode ser?

Mas uma coisa você pode fazer
e sei disso, porque eu também posso.
Sonhe comigo, leve sempre com você
a mesma vontade indefinida que tenho
de encontrar alguém que sem saber
também esteja me procurando.

E quando o acaso ou o destino
quiserem o nosso encontro,
fiquemos juntos, amor, e nos amemos.

terça-feira, outubro 11, 2005

Vamp

Atravesso a porta do bar, vendo de longe o banco onde sempro me sento, peço meu uísque, resmungo alguma coisa sobre algum comentário idiota que o barman fará sobre o tempo, e fico satisfeito em passar o resto da noite simplesmente bebericando do meu copo e observando as pessoas ao redor, enquanto o segundo e o terceiro uísques seguem-se ao primeiro. Mas esta noite é diferente.
Como por mágica, basta que entre para que abra-se o mar de clientes habituais do bar - a massa costumeira de explorados deprimidos e desempregados quase suicidas. Mas não é a terra prometida que aparece na frente deste moisés, e sim a vela derradeira que me fará dançar e queimar alegremente como uma mariposa até as cinzas.
Qualquer pessoa poderia dizer que ela não é daqui, mas todos no bar esão anestesiados demais para isso. Quanto a mim, não imagino como a velha televisão mostrando as estatísticas de violência da cidade - dobraram em relação ao ano passado, o que significa que tudo está normal - poderia interessar-me mais que o falcão enjaulado em um vestido amarelo segurando displiscentemente um martini e uma cigarrilha e me encarando à medida que me aproximo.
Seu olhar é como o sol, punindo os ingênuos que desafiam sua natureza divina e ousam encará-lo de frente. É impossível olhá-la nos olhos, é impossível não olhá-la. A dor e o prazer misturam-se enquanto chego perto. Quando sento-me, continuo encarando-a. Grande erro. Ela simplesmente passa através de mim, como se não existisse, olhando as pessoas em volta.
Sei que ela me notou. Mas não é que ela seja cruel o suficiente para ser tímida; tampouco está envolvida em um jogo vulgar de investidas e recuos, querendo parecer difícil e misteriosa. É apenas a reação natural a um fato que não podemos mudar: por mais que me prostre, ajoelhando-me a seus pés, não sou digno de mais que alguns segundos de sua atenção. No fundo, sou igual a todos os outros zumbis que desprezo. A única diferença é que sei disso, e ajo de acordo.
Então, como bom zumbi do mundo pós-moderno, sento-me indiferente no banco vazio a seu lado. Como todas as noites, o barman pergunta-me o que quero; como todas as nopites, peço o mesmo uísque. Puxo um cigarro do bolso; mas antes que possa encontrar meu zippo, uma mão de marfim estende-me o fogo. Acendo meu cigarro; só depois da primeira tragada, olho para a mão que rapidamente recolhe o isqueiro. Levanto meu olhar para seu rosto, mas ela continua, impassível, olhando para a frente. Seus cabelos são do mesmo amarelo da chama de agora há pouco; não menos fatais, penso.
Meu uísque chega, junto com um segundo martini. De um gole, bebo metade do copo, e com uma pancada coloco-o novamente no balcão. O que eu fazia na juventude por diversão hoje já tornou-se um hábito, e não sei mais ser discreto em um bar. Ela olha para meu copo, sorrindo com o olhar.
"Desculpe, é o hábito", murmuro entre dentes por não ter nada melhor a dizer.
"Não há o que desculpar", e sua voz é a perdição de um anjo que anuncia com alegria nossos pecados e nossa danação. E ela continua, "se nem mesmo conseguimos incomodar ninguém com nosso barulho, de nada servimos."
"Não é o que a maioria das pessoas diz."
"A maioria das pessoas não pode dizer que serve para algo". Agora seus lábios levantam-se verdadeiramente com escárnio. Agora ela me encara, "pelo menos você serve para ser notado". O jogo acabou, a caça começou. Mas quem é a presa, não sei dizer.
"Notado por quem? Olhe ao seu redor, um avião podia cair aqui do lado e elas não notariam a não ser que isso interferisse no sinal da TV."
"Sempre há alguém que nota. Para que serve Deus, afinal, além de nos notar?"
"Pensei que fosse o contrário, que nós tivéssemos que notar Deus e não o contrário."
"Logo vê-se que você nunca foi um deus."
"E quanto a você?"
"Sempre preferi ser notada."
Silêncio. Ela abre a bolsa, pega uma nota e a deixa em cima da bancada, levanta-se e vira as costas. Espero o inevitável, e ele vem. Quando quase não posso ouvir, ela pergunta, "você não vem? Paguei por você também."
Obediente, sigo-a. Saímos do bar; por milagre, a noite está fresca, quase não sentimos o fedor do diesel no ar. Caminhamos por alguns minutos, ainda sem falar, até a ponte. A noite está fria, mas ela parece não notar, enquanto caminha com os braços nus. Encosta-se na murada da ponte e acende outra cigarrilha.
"E então?"
"Não sou eu quem dita as regras."
"Nunca é." Não sei se ela fala de mim ou das pessoas em geral. Prefiro pensar na primeira hipótese. "Você não me conhece o suficiente para dizer isso", digo com um sorriso.
"Pelo contrário. Conheço-os mais que o suficiente, todos vocês." Apostei errado, pelo visto. Mas decido ir mais fundo.
"Isso é impossível. Não se pode conhecer todas as pessoas."
Ela ri. "Como eu disse, logo se vê que você nunca foi um deus."
"Pensei que você tivesse dito que nunca tinha sido um também."
Pausa. "Só disse que preferia a alternativa."
É a hora. Ela afasta-se da murada e caminha em minha direção. Seus olhos negros, seus lábios vermelhos, seu corpo, tudo convida-me ao mesmo tempo que me avisa do perigo. Mas não há mais tempo para cuidado, para prudência. Ela abraça-me, e nossos lábios encontram-se. Perco-me em seu beijo, não sei mais quando ou onde estou. Depois da eternidade, ela afasta o rosto; tento beijá-la novamente, mas ela continua rindo e afastando-se. Nesse jogo, ela leva-me para a murada novamente e me empurra contra ela. Então ela me beija novamente, desta vez enterrando os lábios em meu pescoço. A dor, o prazer, mais nada. Sei que nunca me senti assim, e que nunca mais me sentirei. Ela me larga e o mundo acaba. Meu pescoço está molhado, eu estou tonto, meu corpo treme. Minha visão está turva, não consigo me equilibrar, mas antes de cair no rio ainda consigo ver seus lábios. Apenas os lábios. Vermelhos.

sábado, outubro 08, 2005

De volta à vida...

Só pra não dizer que morri, vou de Drummnod hoje. Mas amanhã ou depois eu devo estar postando um texto meu.

A FLOR E A NÁUSEA
(Carlos Drummond de Andrade)

Preso à minha classe e a algumas roupas, vou de branco pela rua cizenta.
Melancolias, mercadorias, espreitam-me.
Devo seguir até o enjôo?
Posso, sem armas, revoltar-me?

Olhos sujos no relógio da torre:
Não, o tempo não chegou de completa justiça.
O tempo é ainda de fezes, maus poemas, alucinações e espera.
O tempo pobre, o poeta pobre
fundem-se no mesmo impasse.

Em vão me tento explicar, os muros são surdos.
Sob a pele das palavras há cifras e códigos.
O sol consola os doentes e não os renova.
As coisas. Que triste são as coisas, consideradas em ênfase.

Vomitar este tédio sobre a cidade.
Quarenta anos e nenhum problema
resolvido, sequer colocado.
Nenhuma carta escrita nem recebida.
Todos os homens voltam pra casa.
Estão menos livres mas levam jornais
e soletram o mundo, sabendo que o perdem.

Crimes da terra, como perdoá-los?
Tomei parte em muitos, outros escondi.
Alguns achei belos, foram publicados.
Crimes suaves, que ajudam a viver.
Ração diária de erro, distribuída em casa.
Os ferozes padeiros do mal.
Os ferozes leiteiros do mal.

Pôr fogo em tudo, inclusive em mim.
Ao menino de 1918 chamavam anarquista.
Porém meu ódio é o melhor de mim.
Com ele me salvo
e dou a poucos uma esperança mínima.

Uma flor nasceu na rua!
Passem de longe, bondes, ônibus, rio de aço do tráfego.
Uma flor ainda desbotada
ilude a polícia, rompe o asfalto.
Façam completo silêncio, paralisem os negócios,
garanto que uma flor nasceu.

Sua cor não se percebe.
Suas pétalas não se abrem.
Seu nome não está nos livros.
É feia. Mas é realmente uma flor.

Sento-me no chão da capital do país às cinco horas da tarde
e lentamente passo a mão nessa forma insegura.
Do lado das montanhas, nuvens macias avolumam-se.
Pequenos pontos brancos movem-se no mar, galinhas em pânico.
É feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio.

sábado, setembro 17, 2005

Uma poesia e uma explicação

Algumas pessoas comentaram o último texto que eu tinha publicado (Amor Calado), e pelos comentários, a maioria (se não todas) encarou um texto como um desabafo.

Não é que eu não tenha realmente passado pelas situações que eu escrevi; mas o propósito do texto não era desabafar, e sim explorar os preconceitos das pessoas de forma lúdica. Eu apenas usei algumas experiências pessoais - pra sincero, uma experiência especial, um sentimento que me consumiu um pouco demais entre o fim de 2003 e a metade de 2004 e acabou frustrado - pra dar mais verossimilhança ao texto, fazendo com que as pessoas se identificassem mais facilmente com ele. Ou seja, fazer as pessoas lerem o texto até o final, reconhecerem várias situações pelas quais provavelmente já hviam passado, e de repente: COMO ASSIM era um homem falando de outro homem???? Quem me conhece minimamente sabe que eu sou uma pessoa que detesta preconceitos de diversas naturezas - raça, classe, gênero, religião, sexualidade... Esse texto foi para mim uma forma de desconstruir esse preconceito em quem o leu sem mandar @ dit@ cuj@ para o paredão, e se tiver dado resultado em apenas um@ del@s eu já estou feliz ^^ E fazer isso deu trabalho... Quer dizer, são linhas e linhas sem usar NENHUMA identificaçãode gênero pra poder dar certo!

Mas não é só isso... Quer dizer, já expliquei, tá na hora da poesia que prometi no título. Infelizmente, a criatividade tava em crise e ela não é minha, mas quem sabeda próxima vez! Então, lá vai, e até a próxima, pessoal!

Se as minhas mãos pudessem desfolhar
Federico Garcia Lorca


Eu pronuncio teu nome
nas noites escuras,
quando vêm os astros
beber na lua
e dormem nas ramagens
das frondes ocultas.
E eu me sinto oco
de paixão e de música.
Louco relógio que canta
mortas horas antigas.

Eu pronuncio teu nome,
nesta noite escura,
e teu nome me soa
mais distante que nunca.
Mais distante que todas as estrelas
e mais dolente que a mansa chuva.

Amar-te-ei como então
alguma vez? Que culpa
tem meu coração?
Se a névoa se esfuma,
que outra paixão me espera?
Será tranqüila e pura?
Se meus dedos pudessem
desfolhar a lua!!

domingo, setembro 11, 2005

Amor Calado

Ainda hoje, é como quando comecei a gostar dele. Basta vê-lo para que minha respiração fique presa, que meu olhar não consiga desviar-se dele, que o mundo pare para que eu possa vê-lo passar. A ansiedade aumenta enquanto ele chega perto; agora, eu penso. Até ele falar comigo: aí sei que meu rosto vai ficar vermelho, e meus olhos, que antes existiam só para ele, vão começar a, desesperados, procurar qualquer outro lugar (normalmente o chão) para esconderem-se. Ele fala qualquer coisa, provavelmente alguma bobagem simpática que falaria com qualquer pessoa, o tipo de coisa que a gente diz quando quer puxar conversa, ou quando está só de passagem e não quer demorar. Aquele tipo de frase pronta que a gente puxa da manga em qualquer situação. Depois, é um 'até logo' e eu queimo de vergonha.

Cada encontro casual - na rua, num corredor, numa sala, no pátio da cantina - é uma reprise dessa cena. Não importa quantas vezes eu ensaie, imagine dez mil vezes na minha cabeça o que farei e direi na próxima vez, nada muda. É sempre o mesmo bolo na garganta, a mesma cola nos meu pés, sempre parecendo que sou de pedra e não de carne e osso. Só quando ele some da minha visão é que o encanto se desfaz, e eu me acho a pessoa mais idiota do mundo. Falar o que sinto é tão difícil assim?

O irônico é que os momentos em que eu o vejo são sempre esperados com ansiedade. Se passo um dia que seja sem vê-lo, é como se o sol se apagasse, tudo ficasse mais cinza e triste.

Quando penso nessas coisas, eu rio como que fazendo pouco de mim mesmo; afinal, que exemplo melhor de que as pessoas apaixonadas são exageradas? Que nós fazemos coisas sem sentido, imaginamos o impossível, quando nosso coração não nos pertence mais (mais uma vez o exagero deixa sua marca...).

Toda a minha vida parece estar reduzida a essa espera por ele, e depois ao arrependimento de tê-lo encontrado; ou melhor, de tê-lo encontrado e ter deixado passar mais essa chance de tirar esse peso de dentro de mim. Arriscar. Colocar todas as fichas na chance de que, de repente dê certo. Que ele me ouça com o coração aberto. Que eu possa ficar junto a ele sem ter que sentir esse aperto, essa vergonha, essa vontade de gritar e a frustração de não conseguir.

Mas tão naturalmente quanto vem, esse pensamento se desfaz; a realidade é dura demais para que eu possa me iludir assim. Quer dizer, racionalmente eu sei que não há chance; duvido muito que ele seja sequer compreensivo com o que sinto. Quando o sonho é um pouco mais insistente, penso que estou sendo pessimista demais. Mas que escolha eu tenho além do pessimismo? Não posso correr o risco (embora queira acreditar que ele não é capaz disso) do isolamento, das chacotas, das risadinhas, ou até de algo pior.

E é nesse dilema que eu me perco. É essa dúvida que, literalmente e sem exageros dessa vez, tira meu sono. E nada disso adianta sequer para evitar minha reação idiota quando a gente se encontra.

Tento me consolar. Digo a mim mesmo que, se nada acontecer, isso vai passar. Que outras pessoas, mais próximas, mais abertas e possíveis, vão aparecer. Mas... Eu não quero isso. Não quero perder isso que sinto. É um amor sofrido, calado, que me machuca, mas ainda assim é amor. Ele me rasga, me faz ter vontade de gritar, faz com que me sinta um lixo, mas ainda assim, em alguns momentos, me faz sentir como se eu fosse especial, me faz bem só por existir. São momentos raros, é verdade; mas é por isso mesmo valem a pena.

E depois de tudo isso, o mundo gira e volta ao mesmo lugar. Nada mudou desde o começo, é a mesma sensação de sempre que sinto agora. O mesmo aperto no peito. A mesma necessidade de escapar dos olhos que, mesmo sem querer, me devoram. As palavras que só saem aos solavancos, gaguejadas, aaos pedaços. O mesmo bolo de lágrimas contidas na minha garganta. A mesma frustração quando ele se vira e me deixa. Só.

Às vezes eu queria pelo menos poder chorar. Não ter essa necessidade de esconder a tristeza, a angústia. Deixar as lágrimas rolarem até que tudo o que se acumulou dentro de mim seque e leve embora esse peso.

Mas não posso. Nem mesmo isso. Eu sempre aprendi tudo rápido. E me ensinaram cedo que homens não choram.



(Salvador, 7 de setembro de 2005)

sexta-feira, setembro 09, 2005

E então, que quereis?

"Fiz ranger as folhas de jornal
Abrindo-lhes as pálpebras piscantes
E logo de cada fronteira distante
Subiu um cheiro de pólvora
Perseguindo-me até em casa.
Nesses últimos vinte anos
Nada de novo há no rugir das tempestades.
Não estamos alegres, é certo
Mas também porque razão haveríamos de ficar tristes?
O mar da história é agitado.
As ameaças e as guerras
Havemos de atravessá-las, rompê-las ao meio
Cortando-as como uma quilha corta as ondas"
- Maiakóvski, 1912

quarta-feira, setembro 07, 2005

Uma apresentação desnecessária

É aqui que eu me perco. Só não decidi ainda se vou me achar.

terça-feira, agosto 30, 2005

Brumas

vejo o mundo como se estivesse sonhando
como se tudo estivesse lá
mas não fosse resistir a um toque meu
como se o que tenho diante de mim
fosse uma tela frágil que se partiria com um sopro
ou como um castelo de areia que na próxima maré
será como se nunca tivesse existido
exceto na memória de quem o fez

penso que não estou aqui onde creio
mas num filme antigo que por mais queiramos
não esquecemos que vai acabar quando as luzes se acenderem
e teremos que voltar ao mundo real de sempre
com suas alegrias e dores e problemas
(mas e onde está esse mundo real
que eu devia encontrar quando isso acontecesse?
isso é o que nada nem ninguém me querem dizer)

caminho por uma ponte de vidro
que pode se partir a qualquer instante com meu peso
e assim desfazer essa ilusão insensata
sinto vontade de partir esse chão e gritar bem alto
para atrapalhar todos os atores que me rodeiam
e nm que por um instante fazer com que me vejam
com que se vejam e reconheçam que onde estamos
é só um cenário pintado num biombo

tudo isso me faz sentir real
como se fosse eu a realidade ao invés do que me cerca
mas até a arrogância infantil desse pensamento se desfaz
e vejo a verdade que preferia desconhecer
que o que está fora do lugar e é irreal e sonho
não é esse mundo ilógico e frio como metal
não são essas pessoas sem firmeza e sem vida
mas eu que espero demais querendo alma onde não pode haver.



(Salvador, 29 de agosto de 2005)

Fim

vou escrever coisas sem sentido
dizer rezas e ofensas como se fossem irmãs
mergulhar na tempestade e na areia do deserto
só para que você esteja longe de mim

assim não lembrarei de suas mãos
de suas palavras doces e gentis
seus olhares que me queimavam e devoravam
seus lábios que sempre venciam os meus

vou abandonar sua lembrança
junto com suas fotografias
no sótão da casa de onde já fugi
fazendo companhia às cartas e traças

serei cruel com nosso passado
e o matarei ainda que ele peça de joelhos
que eu aceite mais uma vez
um nunca te esquecerei como consolo

se você não pode estar aqui
então é melhor que suma por inteiro
que leve com você essa alegria embolorada
esse sonho enferrujado da noite passada

e finalmente quando você tiver ido
vou poder tranquilamente gritar e sangrar
chorar e quebrar retratos na parede
e depois dormir o sono das crianças e dos loucos.



(Salvador, 8 de agosto de 2005)

Espelhos

Primeiro, vejo um rosto e uma mancha no azulejo. A mancha é marrom e contra o fundo azul parece uma ilha no meio do mar, a Groenlândia, ou será a Austrália? Meu olhar vai do azulejo ao cimento branco que o rodeia e parece com a espuma das ondas, só que as ondas são quadradas e seriam perfeitas se não fossem os buracos que o pedreiro que não veio ontem nem na semana passada não consertou. A coisa toda fica parecendo um mapa de uma ilha fantástica desenhado por uma criança até que a empregada daqui a duas horas, três minutos e catorze segundos, como uma babá rabugenta, desfaça o sonho com pano e desinfetante.
Depois de decorar as praias de minha ilha secreta com a certeza de que poderei sonhar com ela em minha futura velhice senil, passo a observar as formigas, então aí estão os piratas! Entram por um buraco na parede em minha ilha e lá escondem seu tesouro, que história tem ilha e não tem piratas? Agora me conforto sabendo que terei a companhia de homens de longa barba negra, mãos de gancho e tapa-olho quando no meu quarto o médico disser a meus filhos e netos "não vamos poder operar" e a morfina me cochichar no ouvido "não há de ser nada, você ainda vai afundar muitos navios nessa vida de bandido!" e eu fechar os olhos com um sorriso idiota no rosto fazendo pouco dos soluços e choros à minha volta.
Sigo os piratas em sua procissão, esperando talvez encontrar a carcaça de um galeão espanhol ou um cargueiro inglês, mas cruzo de novo com um rosto - cabelos em todas as direções cobrindo e confundindo-se com sobrancelhas bolsas escuras sob os olhos, preto e castanho e vermelho cercados por pálpebras bem apertadas, tanto que parecem até duas listras, pontos pretos e brancos entre o nariz e a boca e também no queixo - e jogo tudo isso num cantinho da minha mente de onde tudo pulará berrando e esperneando num ônibus apertado ou numa mesa de almoço.

Agora o que vejo é um vulto indistinto que se confunde com a rua inquieta às suas costas e com bonecas e despertadores e ímãs de geladeira e toalhas e panos de prato, dispostos num mosaico colorido e hipnótico. Meu olhar percorre todas as galerias desse labirinto; a mulher de vestido rosa e bolsa listrada que atravessa insensível o pano de prato de flores azuis como se ele nem estivesse lá; e o senhor de sobretudo e bengala que para diante do bule minúsculo e prateado, estende a mão num aperto e penso que o bule não vai responder, é um bule afinal de contas, mas percebo que não é um bule, é uma lâmpada, e um gênio de terno e maleta 007 responde ao cumprimento, deve estar esperando o pedido do velho, e sinto vontade de ir lá e saber qual é. Deslumbrado, prendo a respiração enquanto dois rapazes negros andam abraçados, velhos amigos de infância, e um deles tropeça numa caneta dourada que provavelmente vai começar a descascar em dois meses e deixar pedaços de tinta nas mãos e nos punhos das camisas do dono; e o mendigo cochilando em cima do despertador que tem uma caixa verde-cana transparente, sua respiração acompanhando precisamente os ponteiros do relógio; e a mulher magra de pele amarela que leva duas crianças pequenas chorando pelo braço, que dobra a esquina quando percebe que não pode passar pelo porta retrato à sua frente.
Me assusto com a mão direita de unhas pintadas de vermelho vinho e uma discreta aliança prateada no anular, ela pega na prateleira o cartão-postal em cima do qual um pastor pregava aos berros que ainda é tempo de se arrepender, e o cartão tinha estampada uma praia de coqueiros e areia branca, arrepender-se pra quê? De quê? A mão empaca no ar e dela eu passo a um rosto; e junto com seus olhos verdes arregalados (por trás deles? na frente deles? misturados com eles?) vejo um outro par de olhos, são castanhos, e com os cabelos ruivos chanel mesclam-se cabelos negros arrepiados, lembrou um daqueles incêndios que eu vejo na TV, as chamas vermelhas e aquela fumaça negra. Ela se vira e sai correndo para os fundos da loja falar com um segurança de boné e gravata verde, e eu vejo isso como uma projeção de cinema num rosto, que idiota, o rosto é que parece a projeção, um par de óculos de aro preto de plástico e a sombra azulada da barba recém-feita. O despertador começa a tocar uma sirene estridente, estou atrasado, e dou uma última olhada no mendigo que ressona indiferente aos tremores que sacodem sua cama. Ainda ouço um grito, "vai embora maluco!", mas não posso perder tempo vendo pra quem foi o grito e aperto o passo olhando para meus próprios pés de couro preto reluzente.

O que tenho à minha frente é uma piscina dourada e redonda; deve estar bem quente, pois algumas bolhinhas minúsculas saem do fundo e pipocam na superfície. Algumas não estouram, e escapam da solidão juntando-se umas às outras em uma espuma branca, que parece o mar, mas não há ilha e nem piratas, apenas as bolhas que, agora vejo, não se ajudam como pensei, mas se amontoam umas por cima das outras, pisando e esmagando as que estão por baixo.
O fundo da piscina é um vidro grosso debaixo do qual há madeira, mas por que não fazer a piscina no chão como qualquer um faria? E se a madeira apodrecesse o vidro agüentaria o peso? E por que o vidro, também? Vidro é perigoso, as pessoas podem se cortar. Lembro-me criança quando dois homens carregavam um vidro muito grande, meu pai me disse que era uma vitrine, e eu corri e o que caiu por cima de mim quando um deles torceu o pé não foram mendigos nem postais, mas um céu azul que se partiu em bilhões de cacos, e o sol nos cacos fez a Via Láctea no asfalto escuro, e depois tudo ficou vermelho e quente e molhado. Eu lembro também que ouvi meu pai gritar, e só depois percebi que estava gritando também, e minha garganta ficou doendo três dias, e eu não tive que ir pra escola por duas semanas.
Imagino as pessoas tomando banho na piscina (por que elas não se queimam se a água ferve?) e o chão desabando e a água rodopiando pelo ralo, um redemoinho de bolhas e cacos e sangue, gritos e choros também. Então noto a sombra de um rosto, arredondado de olhos semi-fechados de sono. Ignoro-o e bebo a piscina (tão pequena, cabe em minha mão), ela é gelada e amarga, e ainda assim ferve, que coisa, e lembro-me de repente que estou bebendo as pessoas, as lágrimas, o sangue, as ilhas, os piratas, os mendigos e os postais, e me engasgo assustado.
Como sou burro. Não é nada disso, são só bolhas, e elas nem gostam umas das outras mesmo, que culpa eu tenho? Apenas bolhas, más. Sorrio e termino o copo, e esqueço banheiros, vitrines e bares. Só um rosto flutua no ar, e o cumprimento me dando boa-noite.



(Salvador, setembro de 2004)

Luar

A lua
me desnuda
me estuda

micróbio indefeso em lâmina de microscópio
observado analisado anotado relatado
por um olho branco distante de cientista insensível estéril em luva jaleco

A lua
fria crua
me cozinha

em fogo brando de solidão mal-dormida
de paixão não vivida entre lençóis em cama de solteiro
e caminhadas insones por quartos corredores cozinhas banheiros

A lua
pura dura
me censura

Uma nuvem cúmplice amiga me esconde
mas a efêmera fútil ilusão de segurança se desfaz
com o vento cruel que me devolve a luz que nego sem tempo de fugir esconder

A lua
diferente
não mais indiferente?

Retorna me toma envolve revolve
protege conforta afaga abraça
súbito é mãe filha amiga amante mulher tantas que não resta espaço

Para cientista cozinheiro censor solidão.



(Guarajuba/Salvador, julho-setembro de 2004)