terça-feira, agosto 30, 2005

Espelhos

Primeiro, vejo um rosto e uma mancha no azulejo. A mancha é marrom e contra o fundo azul parece uma ilha no meio do mar, a Groenlândia, ou será a Austrália? Meu olhar vai do azulejo ao cimento branco que o rodeia e parece com a espuma das ondas, só que as ondas são quadradas e seriam perfeitas se não fossem os buracos que o pedreiro que não veio ontem nem na semana passada não consertou. A coisa toda fica parecendo um mapa de uma ilha fantástica desenhado por uma criança até que a empregada daqui a duas horas, três minutos e catorze segundos, como uma babá rabugenta, desfaça o sonho com pano e desinfetante.
Depois de decorar as praias de minha ilha secreta com a certeza de que poderei sonhar com ela em minha futura velhice senil, passo a observar as formigas, então aí estão os piratas! Entram por um buraco na parede em minha ilha e lá escondem seu tesouro, que história tem ilha e não tem piratas? Agora me conforto sabendo que terei a companhia de homens de longa barba negra, mãos de gancho e tapa-olho quando no meu quarto o médico disser a meus filhos e netos "não vamos poder operar" e a morfina me cochichar no ouvido "não há de ser nada, você ainda vai afundar muitos navios nessa vida de bandido!" e eu fechar os olhos com um sorriso idiota no rosto fazendo pouco dos soluços e choros à minha volta.
Sigo os piratas em sua procissão, esperando talvez encontrar a carcaça de um galeão espanhol ou um cargueiro inglês, mas cruzo de novo com um rosto - cabelos em todas as direções cobrindo e confundindo-se com sobrancelhas bolsas escuras sob os olhos, preto e castanho e vermelho cercados por pálpebras bem apertadas, tanto que parecem até duas listras, pontos pretos e brancos entre o nariz e a boca e também no queixo - e jogo tudo isso num cantinho da minha mente de onde tudo pulará berrando e esperneando num ônibus apertado ou numa mesa de almoço.

Agora o que vejo é um vulto indistinto que se confunde com a rua inquieta às suas costas e com bonecas e despertadores e ímãs de geladeira e toalhas e panos de prato, dispostos num mosaico colorido e hipnótico. Meu olhar percorre todas as galerias desse labirinto; a mulher de vestido rosa e bolsa listrada que atravessa insensível o pano de prato de flores azuis como se ele nem estivesse lá; e o senhor de sobretudo e bengala que para diante do bule minúsculo e prateado, estende a mão num aperto e penso que o bule não vai responder, é um bule afinal de contas, mas percebo que não é um bule, é uma lâmpada, e um gênio de terno e maleta 007 responde ao cumprimento, deve estar esperando o pedido do velho, e sinto vontade de ir lá e saber qual é. Deslumbrado, prendo a respiração enquanto dois rapazes negros andam abraçados, velhos amigos de infância, e um deles tropeça numa caneta dourada que provavelmente vai começar a descascar em dois meses e deixar pedaços de tinta nas mãos e nos punhos das camisas do dono; e o mendigo cochilando em cima do despertador que tem uma caixa verde-cana transparente, sua respiração acompanhando precisamente os ponteiros do relógio; e a mulher magra de pele amarela que leva duas crianças pequenas chorando pelo braço, que dobra a esquina quando percebe que não pode passar pelo porta retrato à sua frente.
Me assusto com a mão direita de unhas pintadas de vermelho vinho e uma discreta aliança prateada no anular, ela pega na prateleira o cartão-postal em cima do qual um pastor pregava aos berros que ainda é tempo de se arrepender, e o cartão tinha estampada uma praia de coqueiros e areia branca, arrepender-se pra quê? De quê? A mão empaca no ar e dela eu passo a um rosto; e junto com seus olhos verdes arregalados (por trás deles? na frente deles? misturados com eles?) vejo um outro par de olhos, são castanhos, e com os cabelos ruivos chanel mesclam-se cabelos negros arrepiados, lembrou um daqueles incêndios que eu vejo na TV, as chamas vermelhas e aquela fumaça negra. Ela se vira e sai correndo para os fundos da loja falar com um segurança de boné e gravata verde, e eu vejo isso como uma projeção de cinema num rosto, que idiota, o rosto é que parece a projeção, um par de óculos de aro preto de plástico e a sombra azulada da barba recém-feita. O despertador começa a tocar uma sirene estridente, estou atrasado, e dou uma última olhada no mendigo que ressona indiferente aos tremores que sacodem sua cama. Ainda ouço um grito, "vai embora maluco!", mas não posso perder tempo vendo pra quem foi o grito e aperto o passo olhando para meus próprios pés de couro preto reluzente.

O que tenho à minha frente é uma piscina dourada e redonda; deve estar bem quente, pois algumas bolhinhas minúsculas saem do fundo e pipocam na superfície. Algumas não estouram, e escapam da solidão juntando-se umas às outras em uma espuma branca, que parece o mar, mas não há ilha e nem piratas, apenas as bolhas que, agora vejo, não se ajudam como pensei, mas se amontoam umas por cima das outras, pisando e esmagando as que estão por baixo.
O fundo da piscina é um vidro grosso debaixo do qual há madeira, mas por que não fazer a piscina no chão como qualquer um faria? E se a madeira apodrecesse o vidro agüentaria o peso? E por que o vidro, também? Vidro é perigoso, as pessoas podem se cortar. Lembro-me criança quando dois homens carregavam um vidro muito grande, meu pai me disse que era uma vitrine, e eu corri e o que caiu por cima de mim quando um deles torceu o pé não foram mendigos nem postais, mas um céu azul que se partiu em bilhões de cacos, e o sol nos cacos fez a Via Láctea no asfalto escuro, e depois tudo ficou vermelho e quente e molhado. Eu lembro também que ouvi meu pai gritar, e só depois percebi que estava gritando também, e minha garganta ficou doendo três dias, e eu não tive que ir pra escola por duas semanas.
Imagino as pessoas tomando banho na piscina (por que elas não se queimam se a água ferve?) e o chão desabando e a água rodopiando pelo ralo, um redemoinho de bolhas e cacos e sangue, gritos e choros também. Então noto a sombra de um rosto, arredondado de olhos semi-fechados de sono. Ignoro-o e bebo a piscina (tão pequena, cabe em minha mão), ela é gelada e amarga, e ainda assim ferve, que coisa, e lembro-me de repente que estou bebendo as pessoas, as lágrimas, o sangue, as ilhas, os piratas, os mendigos e os postais, e me engasgo assustado.
Como sou burro. Não é nada disso, são só bolhas, e elas nem gostam umas das outras mesmo, que culpa eu tenho? Apenas bolhas, más. Sorrio e termino o copo, e esqueço banheiros, vitrines e bares. Só um rosto flutua no ar, e o cumprimento me dando boa-noite.



(Salvador, setembro de 2004)

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