terça-feira, outubro 11, 2005

Vamp

Atravesso a porta do bar, vendo de longe o banco onde sempro me sento, peço meu uísque, resmungo alguma coisa sobre algum comentário idiota que o barman fará sobre o tempo, e fico satisfeito em passar o resto da noite simplesmente bebericando do meu copo e observando as pessoas ao redor, enquanto o segundo e o terceiro uísques seguem-se ao primeiro. Mas esta noite é diferente.
Como por mágica, basta que entre para que abra-se o mar de clientes habituais do bar - a massa costumeira de explorados deprimidos e desempregados quase suicidas. Mas não é a terra prometida que aparece na frente deste moisés, e sim a vela derradeira que me fará dançar e queimar alegremente como uma mariposa até as cinzas.
Qualquer pessoa poderia dizer que ela não é daqui, mas todos no bar esão anestesiados demais para isso. Quanto a mim, não imagino como a velha televisão mostrando as estatísticas de violência da cidade - dobraram em relação ao ano passado, o que significa que tudo está normal - poderia interessar-me mais que o falcão enjaulado em um vestido amarelo segurando displiscentemente um martini e uma cigarrilha e me encarando à medida que me aproximo.
Seu olhar é como o sol, punindo os ingênuos que desafiam sua natureza divina e ousam encará-lo de frente. É impossível olhá-la nos olhos, é impossível não olhá-la. A dor e o prazer misturam-se enquanto chego perto. Quando sento-me, continuo encarando-a. Grande erro. Ela simplesmente passa através de mim, como se não existisse, olhando as pessoas em volta.
Sei que ela me notou. Mas não é que ela seja cruel o suficiente para ser tímida; tampouco está envolvida em um jogo vulgar de investidas e recuos, querendo parecer difícil e misteriosa. É apenas a reação natural a um fato que não podemos mudar: por mais que me prostre, ajoelhando-me a seus pés, não sou digno de mais que alguns segundos de sua atenção. No fundo, sou igual a todos os outros zumbis que desprezo. A única diferença é que sei disso, e ajo de acordo.
Então, como bom zumbi do mundo pós-moderno, sento-me indiferente no banco vazio a seu lado. Como todas as noites, o barman pergunta-me o que quero; como todas as nopites, peço o mesmo uísque. Puxo um cigarro do bolso; mas antes que possa encontrar meu zippo, uma mão de marfim estende-me o fogo. Acendo meu cigarro; só depois da primeira tragada, olho para a mão que rapidamente recolhe o isqueiro. Levanto meu olhar para seu rosto, mas ela continua, impassível, olhando para a frente. Seus cabelos são do mesmo amarelo da chama de agora há pouco; não menos fatais, penso.
Meu uísque chega, junto com um segundo martini. De um gole, bebo metade do copo, e com uma pancada coloco-o novamente no balcão. O que eu fazia na juventude por diversão hoje já tornou-se um hábito, e não sei mais ser discreto em um bar. Ela olha para meu copo, sorrindo com o olhar.
"Desculpe, é o hábito", murmuro entre dentes por não ter nada melhor a dizer.
"Não há o que desculpar", e sua voz é a perdição de um anjo que anuncia com alegria nossos pecados e nossa danação. E ela continua, "se nem mesmo conseguimos incomodar ninguém com nosso barulho, de nada servimos."
"Não é o que a maioria das pessoas diz."
"A maioria das pessoas não pode dizer que serve para algo". Agora seus lábios levantam-se verdadeiramente com escárnio. Agora ela me encara, "pelo menos você serve para ser notado". O jogo acabou, a caça começou. Mas quem é a presa, não sei dizer.
"Notado por quem? Olhe ao seu redor, um avião podia cair aqui do lado e elas não notariam a não ser que isso interferisse no sinal da TV."
"Sempre há alguém que nota. Para que serve Deus, afinal, além de nos notar?"
"Pensei que fosse o contrário, que nós tivéssemos que notar Deus e não o contrário."
"Logo vê-se que você nunca foi um deus."
"E quanto a você?"
"Sempre preferi ser notada."
Silêncio. Ela abre a bolsa, pega uma nota e a deixa em cima da bancada, levanta-se e vira as costas. Espero o inevitável, e ele vem. Quando quase não posso ouvir, ela pergunta, "você não vem? Paguei por você também."
Obediente, sigo-a. Saímos do bar; por milagre, a noite está fresca, quase não sentimos o fedor do diesel no ar. Caminhamos por alguns minutos, ainda sem falar, até a ponte. A noite está fria, mas ela parece não notar, enquanto caminha com os braços nus. Encosta-se na murada da ponte e acende outra cigarrilha.
"E então?"
"Não sou eu quem dita as regras."
"Nunca é." Não sei se ela fala de mim ou das pessoas em geral. Prefiro pensar na primeira hipótese. "Você não me conhece o suficiente para dizer isso", digo com um sorriso.
"Pelo contrário. Conheço-os mais que o suficiente, todos vocês." Apostei errado, pelo visto. Mas decido ir mais fundo.
"Isso é impossível. Não se pode conhecer todas as pessoas."
Ela ri. "Como eu disse, logo se vê que você nunca foi um deus."
"Pensei que você tivesse dito que nunca tinha sido um também."
Pausa. "Só disse que preferia a alternativa."
É a hora. Ela afasta-se da murada e caminha em minha direção. Seus olhos negros, seus lábios vermelhos, seu corpo, tudo convida-me ao mesmo tempo que me avisa do perigo. Mas não há mais tempo para cuidado, para prudência. Ela abraça-me, e nossos lábios encontram-se. Perco-me em seu beijo, não sei mais quando ou onde estou. Depois da eternidade, ela afasta o rosto; tento beijá-la novamente, mas ela continua rindo e afastando-se. Nesse jogo, ela leva-me para a murada novamente e me empurra contra ela. Então ela me beija novamente, desta vez enterrando os lábios em meu pescoço. A dor, o prazer, mais nada. Sei que nunca me senti assim, e que nunca mais me sentirei. Ela me larga e o mundo acaba. Meu pescoço está molhado, eu estou tonto, meu corpo treme. Minha visão está turva, não consigo me equilibrar, mas antes de cair no rio ainda consigo ver seus lábios. Apenas os lábios. Vermelhos.

Um comentário:

Liu Lisboa disse...

este era o texto que havia pensado ou minha vermelhidão morna e úmida andou mexendo com tua mente? adorei o texto...pude sentir a superfície áspera da murada em que estava encostado...
beijos